Médico de referência, chegou a Setúbal em 1953 e, com décadas de trabalho e intervenção social, afirmou-se como um exemplo de humanismo
Mário Moura nasceu em Coimbra, em 1927, no seio de uma família modesta. Licenciou-se em medicina naquela cidade, tendo chegado a Setúbal em Fevereiro de 1953 e permanecido desde então.
Detentor de um longo e distinto percurso no campo da medicina, tendo sido o primeiro laureado com o Prémio Miller Guerra de Carreira Médica em 2013, definiu-se igualmente como uma das figuras de referência no campo da assistência em Setúbal, focando grande parte da sua carreira no providenciar de respostas às necessidades de saúde dos sectores mais necessitados da população.
Opositor ao Estado Novo, a sua actividade como director do periódico “Notícias de Setúbal”, jornal da Igreja Católica, procurou assegurar um palco na imprensa local para as grandes questões sociais.
Ao longo dos anos tem feito referência ao nível alarmante de pobreza que veio encontrar em Setúbal no início da década de 50. O que pensa da pobreza continuar em certas zonas, com aglomerados habitacionais clandestinos?
O sistema social e económico que orienta as nossas sociedades em geral, do lado da Europa e da América, faz com que haja mais milionários e mais pobres. É um sistema baseado no mercado e que não sabe dividir, não se preocupa com problemas sociais. Esta pobreza que sempre tem sido progressivamente esquecida, quando não “varrida” para fora, não é com o tipo de organização socioeconómica que temos que se resolve. Um dos lados positivos desta pandemia é ter virado de pantanas tudo quanto é a nossa organização social que, no meu entender e no de muita gente que escreve por aí, é a possibilidade de nestas ruínas, construir uma sociedade nova com o que se chama a economia de Francisco [Papa Francisco], uma economia que deve ter a preocupação social, a preocupação dos pobres, a preocupação da igualdade de acesso… Todas as coisas que não são bem cuidadas no tipo de economia que temos. A pobreza continua a ser um factor da nossa sociedade que todos temos de fazer os possíveis para resolver e, com a organização que temos, não se resolve.
Como acaba um médico na cadeira de director de um jornal local?
Em Coimbra dirigi o jornal (que era a Via Latina) da Associação Académica, fui director da associação dois anos. O Via Latina estava morto e, quando fui para a Associação Académica, reavivei-o; o jornal aqui [Notícias de Setúbal] começou a perder assinantes da Igreja estabelecida, mas começou a haver operários que o queriam ler. Eu já vim referenciado de Coimbra, porque pertencia a uma direcção que era conotada com a esquerda, havia dois elementos que, à boca cheia, se dizia que eram clandestinamente partidários do PCP. Quando casei, um ano depois, quis tirar o primeiro passaporte e esperei quase três meses que viesse porque não vinha a informação positiva da polícia… Tive carteira profissional de jornalista. Dirigia o jornal, escrevia muito; tudo ia para a censura, nunca pensei que ia haver um 25 de Abril, por isso não guardei nada do que foi cortado. Mas tínhamos de conceber o jornal e mandar ao Capitão Almeida [censor de serviço em Setúbal], um linguiça muito alto com quem travei muito boa relação porque ele era um bonzão; mas ele, na dúvida, cortava e a gente tinha de fazer outra coisa. Nem podia mostrar que tinha sido censurado! Não podia deixar um espaço em branco ou um anúncio no meio de um artigo, qualquer coisa que desse a entender que tinha havido censura.
Numa crónica recente escreveu que “só pode saborear a liberdade quem viveu anos e anos em ditadura”. Tomamos a liberdade por garantida?
Não. Mas acho que a democracia está ameaçada. Não temos uma democracia, temos uma partidocracia. Quer dizer, acho que em todos os sítios nascem personalidades fortes ou interesses muito bem vincados que dominam a zona e controlam a vida e as opiniões. Depois, sugere quem vai para o andar seguinte. Daí, sugere também quem vai para o andar seguinte até ao nível ministerial. E cada um que sobe fica a dever um favor ao outro. É por sermos uma partidocracia que a corrupção mina com facilidade. Portanto, o processo democrático (no meu entender) está coxo e precisa de uma mudança. Eu acho que a oportunidade que temos, agora no pós-pandemia, é o momento propício para se poder tentar fazer algumas dessas correcções na sociedade.
*Pedro Fernandes – Investigador do Pólo História, Territórios e Comunidades, FCSH, UNL