Foi muito difundida uma imagem do anarquismo como sendo uma coisa de extremistas violentos. Ou de sonhadores utópicos, que se ficam pela crítica do sistema existente, sem serem capazes de construir nada de positivo. Mas basta investigar um pouco para encontrar uma realidade bem diferente.
Até hoje, o período em que o anarquismo mais floresceu em Portugal foi pelo primeiro terço do século XX, sobretudo no período anterior à ditadura instaurada pelo golpe militar de 1926. Se olharmos para os antigos grupos anarquistas desse tempo, salta à vista que a prioridade de muitos deles era criar uma escola e uma biblioteca.
Afinal, o desenvolvimento de cada individuo a nível cultural e ético, será uma prioridade natural para um movimento que ambiciona uma sociedade igualitária e livre, vivida por pessoas livres. Não deve ser apagado o contributo anarquista para um dos maiores desafios do Portugal da época: a superação do analfabetismo e o acesso à cultura.
Esse contributo foi notório não apenas em grupos anarquistas, mas também em muitos sindicatos e em instituições associativas com influência anarquista, como A Voz do Operário e a Escola Oficina N.º 1 ou a Universidade Popular Portuguesa (que teve secções em Setúbal e no Barreiro).
Foi graças a iniciativas colectivas como estas que milhares de pessoas tiveram acesso a instrução escolar e formação cultural.
Entre os mais notáveis pedagogos portugueses da época estiveram aliás alguns anarquistas, como os professores Adolfo Lima e Emílio Costa (que foram directores escolares de A Voz do Operário) ou o professor Aurélio Quintanilha (biólogo de prestígio internacional, que a ditadura afastou da Universidade de Coimbra em 1935).
Outro exemplo é uma associação que faz brilhar a região de Setúbal no xadrez: o Ateneu Popular do Montijo. Formou-se em 1946, a partir de um grupo de jovens entusiastas de esperanto – idioma internacional criado para promover a comunicação e a paz entre todos os povos do mundo.
Pois a transformação desse grupo numa associação cultural de cariz mais lato teve como como mentor um histórico anarquista que nessa altura viveu no Montijo: João Vieira Alves.
Era uma pessoa com a experiência de liderar um grande sindicato, a «União dos Empregados no Comércio do Porto», e a zona norte da «Federação Portuguesa dos Empregados no Comércio».
E já como sindicalista tinha revelado um particular empenho cultural, envolvendo-se, por exemplo, na criação de um grupo de teatro e de um orfeão, no Porto, e da Universidade Livre de Coimbra (uma congénere da Universidade Popular sediada em Lisboa) Viera Alves era um ex-preso político antifascista.
Entre 1935 e 1937, esteve encarcerado nos fortes de Peniche e de Angra do Heroísmo. Até sair em liberdade condicional por motivos de saúde: estava a ficar cego.
Voltou a ser preso ainda em 1937. Um ano depois fugiu, mas acabou sendo recapturado pela PIDE, ficando no forte de Peniche até 1941.
Saiu da prisão com a visão muito debilitada. Já não teria condições de retomar o seu ofício de contabilista. Como conseguiu sobreviver, então? Com a ajuda de amigos, fundou a “Bolsa do Livro”, um sistema comercial de venda e aluguer de livros por correspondência.
Mais tarde, fundou a Associação dos Cegos do Norte de Portugal, dedicada a facultar assistência médica, aulas, bengalas e medicamentos. Pois em 1946 João Vieira Alves veio viver para o Montijo, onde instalou a “Bolsa do Livro”.
E ajudou a formar o Ateneu Popular, ao nível da elaboração dos estatutos e como presidente da Assembleia Geral. Em 1947, esta associação já tinha em funcionamento uma escola primária com um curso diário e outro nocturno. Além de aulas de nível secundário e de dactilografia.
*Luís Carvalho – Investigador