27 Junho 2024, Quinta-feira

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A Gripe Espanhola: Os efeitos em Setúbal da mais fatal pandemia de todos os tempos

A Gripe Espanhola: Os efeitos em Setúbal da mais fatal pandemia de todos os tempos

A Gripe Espanhola: Os efeitos em Setúbal da mais fatal pandemia de todos os tempos

|||||A Mocidade

Paralelismo e diferenças entre a Pneumónica, que atingiu uma em cada três pessoas no mundo, e a pandemia de covid

 

Nas investigações que a seguir se publicam, a História de Setúbal cruza-se com a História nacional e mesmo mundial. Nessa encruzilhada podemos encontrar momentos de procura da verdade histórica e de reinterpretação do passado desta comunidade, que com a sua idiossincrasia se tem afirmado ao longo das centenas de anos em que foi sendo (re) construída.

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Escolhemos três acontecimentos ocorridos nos últimos cem anos da História da cidade: A Gripe pneumónica de 1918, que causou centenas de vítimas em Setúbal, e as duas das principais mudanças políticas que tiveram lugar no século passado: o 28 de Maio de 1926 e o 25 de Abril de 1974.

O SETUBALENSE continua a ser um recurso fundamental. Por mais de uma vez foi ele próprio actor da própria História

A pneumónica de 1918 – A mais grave e mortífera epidemia da História da Humanidade

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Quando vivemos um dos momentos mais inquietantes das nossas vidas individuais e colectivas, sob o jugo de uma pandemia que assola o mundo inteiro, é oportuno recordar que não é a primeira vez que nos confrontamos com fenómenos semelhantes.

Evidentemente que o mundo de 2021, em que o Corona Vírus hoje se passeia, é um mundo bem diferente daquele que sofreu a acção da Influenza em 1918. Mais móvel, mais rápido, mais avançado em termos tecnológicos, mais munido de ciência.

O Setubalense, 14 de Março de 1919

E, contudo, esta pandemia veio mostrar-nos uma impensável vulnerabilidade planetária. Por todo o mundo, países inteiros ostentaram já, amedrontados ruas, praças, bairros, vazios de gente, como que inabitados.

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As cidades sempre a pulsar de vida, trabalho e deleite parecem espaços feridos, desolados, abandonados à sua sorte. E se é verdade que esta pandemia se abateu sobre a totalidade do planeta, não é verdade que o tenha feito em idênticas condições.

Entre o mundo desenvolvido e vacinado e o mundo trágico do subdesenvolvimento há um mar de diferenças que merecem mais que uma mera reflexão.

Posto isto, há pouco mais de um século, Portugal e o mundo foram devastados pela mais grave e mortífera epidemia da História da Humanidade, na perspectiva de vários historiadores.

Ficou conhecida pela gripe pneumónica de 1918, também crismada como a “gripe espanhola”. Não havendo estatísticas rigorosas sobre o número de mortos, durante muito tempo pensou-se que o saldo final rondaria em mais de 20 milhões de mortos.

No entanto, estudos recentes estimam que terá atingido números muito superiores, entre 50 e os 100 milhões de mortos.

A pneumónica disseminou-se velozmente pelos diversos continentes em três vagas sucessivas: a primeira ocorreu na Primavera de 1918; a segunda, mais mortífera, ainda no Outono de 1918; finalmente, uma terceira, no Inverno Primavera de 1919, com menor impacto.

Em Portugal, terá entrado pela fronteira terrestre, em maio de 1918, pelo contágio de trabalhadores que trabalhavam em Espanha, e por militares que haviam participado na I Guerra Mundial.

As principais cidades portuguesas serão duramente afectadas. Em Lisboa esquadras da polícia, postos de correio e outras estruturas encerram as portas por falta de funcionários. Os hospitais rapidamente ficam superlotados, procurados por milhares de pessoas. Os mortos chegam a acumular-se à porta dos estabelecimentos hospitalares à espera da passagem dos carros funerários.

O Presidente Sidónio Pais, em Outubro de 1918, impõe um conjunto de medidas para tentar travar a epidemia. Proíbe todas as feiras e romarias, decreta o adiamento do início do ano escolar, proíbe as manifestações do 5 de Outubro. Utilizou ainda a censura à imprensa como forma de ocultação da doença.

Tanto o poder central como o poder local não tomaram medidas de isolamento domiciliário ou encerramento de espaços públicos como estratégia de combate à epidemia.

Ricardo Jorge, o principal paladino responsável pelo combate à pneumónica, desaconselhava vivamente o hábito de apertar a mão e o de dar beijos como forma de evitar a contaminação. Os meios de combate à epidemia eram muito precários. O conhecimento da doença era igualmente parco.

Em Portugal, persistem dúvidas em relação ao número de vítimas mortais. As estatísticas oficiais apontam para cerca de 60 000 mortos, dos quais 56 000 só no ano de 2018. Investigações mais recentes avaliam que poderá ter havido entre 100 000 e 130 000 vítimas.

A pneumónica chega rapidamente a Setúbal

A pneumónica chega a Setúbal, num período de intensa crise social e política.

Inauguração do Orfanato Municipal Dr. Sidónio Pais, O Setubalense, 19 de Maio de 1919

O ano de 1918 é marcado por várias greves da indústria conserveira e da construção civil. O confronto político, entre os partidários do Presidente Sidónio Pais e os sectores republicanos, socialistas e anarquistas que se lhe opõem, passa pelo uso da violência chegando a explodir bombas em vários pontos da cidade durante o mês de Novembro de 1918.

A crise das subsistências batia igualmente à porta dos setubalenses. A gripe propaga-se rapidamente pelos espaços urbanos e rurais numa cidade já fustigada pela fome, pelas consequências da guerra, pela intensidade da luta social e política e ainda pela presença de uma outra terrível doença: a varíola.

A epidemia lavrava, impiedosa, numa cidade em que o boom da indústria conserveira contribuía para a degradação ambiental e para a deterioração das condições higiénicas, de vida e de habitação das populações mais pobres.

Em Setúbal, vários estabelecimentos comerciais vão encerrar as suas portas. Todos os trabalhadores haviam sido vítimas da gripe. O semanário socialista O Trabalho, em Outubro de 1918, é obrigado a interromper a sua publicação, devido à situação epidémica que se vive na cidade.

Só retoma a actividade no início do ano de 1919. Luís Faria Trindade, director d’O Setubalense, terá sido também atingido pela pneumónica, no mês de Outubro.

Dos mais pobres à classe média e alta ninguém escapava aos efeitos da gripe. Serão, contudo, os mais pobres a sofrer as maiores consequências. No mês de Outubro de 1918, há na cidade 470 funerais. Chegaram a realizar-se 67 enterros num só dia.

O hábito de tocar os sinos quando ocorriam as cerimónias fúnebres era um factor que ajudava a potenciar de uma forma cada vez mais intensa o alarme social na cidade, já de si enlutada e inquieta.

Os toques ininterruptos dos sinos contribuíam para o alastrar e aprofundar o pânico individual e coletivo em que se vivia naqueles dias. A proibição do toque dos sinos acabará por ser imposta.

A acção do médico Paula Borba

Francisco Paula Borba, num escrito memorialista, relata de forma emocionada o início deste período: “Foi em Setembro de 1918, que apareceram no Hospital de Setúbal os primeiros casos de gripe pneumónica epidémica. Estes doentes em número de sete, vinham das propriedades de Rio Frio e com sintomas tão graves, que o primeiro doente faleceu antes de entrar na enfermaria, e os restantes, à excepção de dois, faleceram em menos de três dias. Aparecendo dúvidas no diagnóstico da doença, foram imediatamente isolados e empregados os meios que a clínica indicava.”

Continuando no seu relato, refere que a análise dos livros do hospital, que permitiam ver a entrada dos doentes por localidades e épocas, propiciaria a conclusão de que o número de casos havia aumentado “com a intensidade do frio, e que a sua gravidade estava na razão direta do sazonismo e da localidade e na inversa do conforto e higiene das habitações.” (Relatório da Associação de Beneficência da Misericórdia de Setúbal relativo ao triénio 1917-18, 1918-19 e 1919-20.) – Coleção particular Eng. Francisco Borba.

Descreve igualmente o ritmo e as condições de trabalho no Hospital de Setúbal: “As entradas dos doentes aumentaram dia a dia, e as consultas e receituários gratuitos cresciam assustadoramente. Se necessitamos de recursos pecuniários, estávamos com falta de pessoal e camas para satisfazermos os urgentes socorros que nos eram exigidos.”

A falta de médicos, que ao longo desta investigação nos tem aparecido como uma constante, é descrita por Paula Borba de forma clara: “Dos 4 médicos do hospital só dois estavam ao serviço, porque o 3.º tinha sido mobilizado para França e o 4.º estava ausente por doença da família; o pessoal de enfermagem e serviços auxiliares só tínhamos os indispensáveis para épocas normais: o número de camas como já tivemos ocasião de dizer, eram insuficientes para satisfazerem os frequentes pedidos. Nestas condições, assustava-nos o desempenho dos que eramos obrigados a prestar às populações, e dos quais dependia a diminuição de muito sofrimento e o salvamento de algumas vidas.”

Director do Hospital de Setúbal, Paula Borba viu-se de repente colocado no centro do vulcão. Sem médicos, sem camas, sem pessoal de enfermagem em número suficiente, este médico setubalense tentará fazer frente à brutal adversidade com que havia sido confrontado de um momento para o outro.

Não baixará os braços. Coadjuvado pelo Subdelegado de Saúde, Dr. Fernando Garcia, recorrerá à Câmara, tentará os apoios possíveis e impossíveis, destacando aliás neste registo o donativo em dinheiro no valor de mil escudos, dado pelo Presidente da República Sidónio Pais.

Nesta contingência pandémica mostrará um voluntarismo férreo. A situação exigia-o. No seu registo refere: “Todas as dependências e corredores do Hospital foram ocupados por camas completas, e nenhum dos doentes deixou de receber os socorros urgentes e o conforto que necessitava ou nos pediam.”

As autoridades locais

Todas as autoridades locais, desde a Comissão Administrativa da Câmara Municipal ao Administrador do Concelho, passando pela Misericórdia e outras congregações religiosas, como a Delegação local da Cruz Vermelha Portuguesa, tentam mobilizar meios e tomar medidas no sentido de atenuar os efeitos da epidemia.

De destacar, que a comissão Administrativa da Câmara Municipal tem uma atitude particularmente pró-activa no combate à pandemia, num quadro em que o Governo se mostra incapaz de estar à altura para responder à difícil situação que se vivia.

Esta Câmara era presidida por Henrique Augusto Pereira, apoiante e apoiado pelo Presidente Sidónio Pais. Era sustentada pelos sectores mais conservadores da cidade e bastante crítica das anteriores governações republicanas.

O Administrador do Concelho de Setúbal, em articulação com a CMS, emana uma ordem referente aos comportamentos a que a população deveria obedecer face às mortes provocadas pela pneumónica: “Proibir terminantemente que no percurso para o cemitério os caixões sejam abertos, devendo mandar prender por desobediência os que não acatarem estas ordens e mais se sirva aconselhar as famílias dos falecidos o máximo asseio e desinfecção do local onde se deu o óbito”.

A Guarda Nacional Republicana seria responsável por fazer cumprir esta determinação.

Outra das iniciativas tomadas pela CM, com o apoio da Liga de Defesa da Propaganda de Setúbal, é a criação de uma Comissão de Assistência às Vítimas da Epidemia. Aqui se reúnem as forças vivas da cidade.

Será nesta Comissão que será proposta a fundação de um orfanato para os órfãos de pais vitimados pela Gripe Pneumónica. Nesta reunião, o Dr. Paula Borba apontou esta questão como uma das prioridades de intervenção: “Muitas há tenras criancinhas que pai e mãe foram vítimas da terrível epidemia que se encontram completamente abandonadas à mercê do destino” (Alvorada, 15 de Novembro de 1918).

Alvorada, 15 de Novembro de 1918

O orfanato será de facto inaugurado no ano seguinte com a designação de Orfanato Municipal Dr. Sidónio Pais e virá a ter um papel importante no apoio às crianças mais desfavorecidas.

Todas estas medidas revelar-se-ão insuficientes e limitadas para enfrentar uma epidemia desconhecida e que de uma forma impiedosa se abatia sobre toda a comunidade setubalense.

Quanto ao número de óbitos provocados pela epidemia, não é conhecido com rigor. As informações coligidas pelo Instituto Central de Higiene referem a existência de 2633 óbitos no ano de 1918, atribuindo à gripe pneumónica a causa da morte de 672 (25,5%) e à varíola a causa de morte de 396 (15%) pessoas. (Ferreira, 2019; 132)

Lembremos que a população do concelho era de cerca de 50 000 habitantes. Estavam ainda integradas no concelho as freguesias de Palmela.

Naturalmente, dado ser o mais populoso, o concelho de setúbal apresenta o maior número de óbitos. Houve, no entanto, outros concelhos, com menor população, mas onde a percentagem de óbitos foi bastante superior.

O primeiro lugar deste ranking macabro pertence a Alcochete com 40% de vítimas da gripe, seguido pelo Montijo e Alcácer do Sal, respectivamente com percentagens de 35,4% e 32,5%. O concelho menos atingido pela gripe foi Santiago do Cacém com 4%.

A Pneumónica na imprensa sadina

Nestes anos, a imprensa setubalense contava com vários títulos reflectindo a existência de diversos espectros políticos e ideológicos. Republicanos, socialistas, anarco sindicalistas, integralistas e monárquicos expressavam publicamente as suas posições de uma forma veemente.

Apesar de a censura ter sido imposta à imprensa durante o período da pandemia, como forma de evitar mais alarme social, em Setúbal, as notícias referentes a esta epidemia vão estar sempre presentes e, de algum modo, estas notícias ilustram bem a dimensão e a intensidade devastadora da doença.

O Setubalense, Diário da Noite, próximo dos republicanos e socialistas, foi o primeiro jornal, logo em Junho de 1918 a referir-se à pneumónica, indicando que as análises médicas assinalavam que se tratava apenas de “uma simples gripe”.

Em Setembro, num outro registo alerta para as condições de pouca salubridade existentes na cidade e enuncia os perigos em que a população vive: “seria uma desgraça pois há pouca higiene e as pessoas vivem em cortiços com a febre de instalar fábricas”. (Pereira, 2011; 332).

No início de 1919, o diário sadino continua a seguir com atenção o evoluir da nova vaga da pandemia. A 17 de Janeiro reporta-se ao estado sanitário que se vive em Lisboa. O tom é de alarme: “Parece confirmar- -se uma nova investida da perigosa enfermidade na capital”.

No dia seguinte, volta ao tema, referindo-se à existência de centena e meia de casos de varíola, referindo, contudo, não haver indícios da recrudescência da gripe pneumónica.

Em Fevereiro, O Setubalense alarma-se de novo, chamando-lhe “Gripe Assassina” e alertando para o perigo de uma terceira vaga que já se fazia sentir em vários países europeus.

O Setubalense, 28 de Fevereiro de 1919

No mês de Março volta ao tema: “Ameaça-nos com nova visita esta epidemia”. E em Abril, a propósito da crise das subsistências, refere-se-lhe como “a pavorosa onda mortífera” que no ano anterior havia atingido a sociedade setubalense.

O Setubalense foi o jornal que insere mais notícias sobre a pneumónica. Porém, os outros jornais, apesar das limitações impostas pela censura, também se lhe referem. O Alvorada, jornal quinzenário dos empregados de comércio e indústria, em 15 de Novembro de 1918, dá grande destaque na 1.ª página à reunião promovida pela Comissão Administrativa da Câmara.

No mês seguinte, com uma oratória pungente e consternada, o periódico defensor dos empregados de comércio e indústria caracteriza os tempos vividos como “Dolorosos momentos! Horas de prantos e sofrimentos!” e ocupa toda a primeira página do jornal para homenagear um dos seus correligionários (Izidro da Maia Cordeiro) vítima da “terrível gripe”.

A Mocidade, jornal impulsionado pelos jovens conservadores, que se auto-intitulava “Folha quinzenal, literária e noticiosa”, também acompanhou, com sentida preocupação, o evoluir da pandemia na cidade e foi-se pronunciando sobre as medidas tomadas para a combater.

Em 15 de Outubro, divulga dados aterradores, referindo que o luto já atingiu quase todos os lares setubalenses e que “A epidemia está diariamente arrebatando, do convívio dos vivos, dezenas de criaturas”.

Relata com detalhe a reunião na Câmara Municipal com as principais autoridades políticas e sanitárias. Compraz-se com as decisões tomadas relativamente ao combate à doença e à ajuda aos mais necessitados. Considera que a situação continua a ser “deveras alarmante”.

Dá pormenores sobre a forma com a pneumónica tem devastado a sociedade setubalense: “Em muitas casas têm morrido pai e mãe, deixando na orfandade os filhinhos que por aí andam aos baldões da sorte”. (A Mocidade, 1 de Novembro de 1918).

A Mocidade, 1 de Novembro de 1918

Por sua vez o periódico a Restauração, que se designava “jornal monárquico e integralista”, apoiante entusiasta da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, no 1.º de Dezembro de 1918, anuncia o triunfo sobre a epidemia, considerando-a extinta, sustentando que a luta contra a doença foi “uma cruzada santa de Sacrifício e Amor”.

Num artigo assinado por João Semana (Dr. Fernando Garcia) esta folha monárquica e integralista, em termos de balanço na luta contra a epidemia, destaca a acção de três instituições e do seu pessoal como havendo tido um papel decisivo na sua extinção.

Em primeiro lugar o Hospital de Setúbal “casa verdadeiramente Santa”, onde o seu pessoal deu o seu melhor em favor dos pobres. O pessoal da Cruz Vermelha “no seu triste papel de estafetas da doença e da morte, que demonstraram um zelo, uma correcção, um aprumo inaudíveis, marcharam para o seu posto perigoso e repugnante, com o aprumo do soldado marchando para a parada”.

E, finalmente, o pessoal da Conferência de São Vicente de Paula cuja “Santa actividade” permitiu tratar os mais pobres que viviam “nas barracas imundas do Bairro da Folha ou dos Olhos de Água”, os quais segundo o articulista se tinham recusado a trocar as “suas enxergas podres” pelo hospital.

Ainda em primeira página e neste mesmo número, o jornal destacará o papel de três protagonistas como os principais heróis da luta contra a pandemia “uma trindade perfeita a quem Setúbal muito deve”: O Presidente da Comissão Administrativa, Henrique Pereira e os médicos Paula Borba, director do Hospital da Misericórdia e Fernando Garcia subdelegado de saúde.

A Restauração, 1 de Dezembro de 1918

Henrique Pereira é apresentado como o político que conseguiu derrotar a burocracia e vencer a pandemia. Paula Borba é caracterizado como o “Santo moderno” que à frente do Hospital da Misericórdia conseguiu “verdadeiros milagres” para vencer a epidemia.

A “inteligência e o talento” de Fernando Garcia completava a trindade que salvou Setúbal de males maiores provocados pela pandemia.

 

A concluir

A Pneumónica, ou Gripe Espanhola como também ficou conhecida, integrou a mais fatal pandemia de todos os tempos.

Terá afectado uma em cada três pessoas da população mundial.

Mais de um século depois, quando o planeta mergulha instantaneamente numa outra pandemia, é inevitável fazer paralelismos e traçar diferenças.

Desde logo, podemos afirmar que o medo e o pânico com que os habitantes daquele início do XX enfrentaram o vírus, não será muito diferente do medo e pânico contemporâneos.

Mas enquanto na Pneumónica se tentava evitar aquela agitação que o medo ou pavor sempre provocam, o séc. XXI rodeou-se de todos dispositivos comunicacionais que possui e todos os dias grita bem alto números, avisos, mortes, avanços e recuos de um combate que, no preciso momento em que escrevemos, ainda está longe de ser ganho.

Hoje, a pandemia faz hoje parte do espectáculo mediático.

Em 1918, as notícias surgiam timidamente nos jornais, sendo que grande parte da população era analfabeta. Os sinais da tragédia chegavam pelo soar sinistro dos sinos, quando os corpos saíam para os funerais que se sucediam.

O poder acabou, como forma de neutralizar as más notícias que a toda a hora iam chegando boca a boca, por proibir aqueles toques que propagandeavam alto e bom som as mortes sucessivas.

Ainda que a realidade fosse absolutamente trágica, sabia- -se pouco sobre o que se passava. Mesmo assim, encontramos nos jornais setubalenses, em especial n’O Setubalense, notícias variadas.

Contudo, enquanto hoje a pandemia ocupa o centro das nossas vidas, ao ler toda a imprensa dos dias da pneumónica, ficamos com a sensação de que as tragédias eram vividas familiarmente, casa a casa, continuando a vida de todos os dias, ainda que mais enlutada e mais triste.

Tal facto deve-se eventualmente ao confinamento, hoje tornado obrigatório e então apenas sugerido. Na verdade, algumas instituições pararam, fechando portas. Mas essa paragem, que gerava um confinamento involuntário, era devido às mortes que nelas se tinham passado.

Olhando hoje para trás, e analisando as informações que temos sobre os serviços de saúde, custa imaginar o cenário daqueles dias trágicos. Tomando como exemplo o Hospital de Setúbal, ficamos a saber que aqui existiam apenas dois médicos.

Evidentemente que nos estamos a referir a núcleos populacionais mais pequenos. A população setubalense em 1918 era bem mais diminuta do que aquela que hoje o concelho tem. Ainda assim, não há comparação possível entre uma sociedade dotada de SNS, com uma parafernália de recursos técnicos e medicamentosos, com centenas de médicos eternamente considerados insuficientes numa situação de pandemia, com aquela sociedade que viveu os dias tristes da pneumónica.

Dias tristes. Em Setúbal vivia-se mais uma vez uma profunda crise social. Estávamos em pleno consulado de Sidónio Pais, no fim da guerra, na chamada crise das subsistências. A pandemia veio ainda aprofundar de forma trágica todos os dramas que eram já mais que suficientes para ensombrar a vida das pessoas.

Os historiadores de hoje interrogam-se sobre as verdadeiras razões que terão levado a este persistente esquecimento, a esta espécie de apagão na memória colectiva, que persistiu durante décadas, relativamente àquela pandemia. Há traumas que de facto a memória tem dificuldade em guardar.

Parecia haver um pacto tácito de consciente ou inconscientemente, tratar a Pneumónica como uma nota de rodapé, não lhe dando o destaque que deveria merecer. Estamos a falar de uma pandemia que, segundo os estudos mais recentes, matou mais que as duas guerras mundiais.

Não fora a existência de uma outra pandemia quase um século depois e, possivelmente, assim continuaria, enquanto apontamento timidamente colocado à margem da narrativa histórica.

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