Com o título “Setúbal sob o Estado Novo. A Resistência a Salazar”, o Professor Albérico Afonso Costa deu recentemente à estampa o primeiro dos dois volumes que formarão a obra que historia e analisa mais de quatro décadas de oposição, por parte de muitos cidadãos do Distrito de Setúbal, ao regime totalitário de que todos nos libertámos, em 25 de Abril de 1974.
O presente volume que inclui precioso acervo iconográfico, documentando as várias décadas consideradas, “o tempo de consolidação do Estado Novo salazarista e o seu decurso, até 1949”, estabelece o Autor “continua e aprofunda as investigações anteriores sobre a História da cidade na época contemporânea” e narra os primeiros “anos de chumbo”, entre 1933 e 1949. Está a obra prefaciada por outro notável historiador, o Professor Fernando Rosas que bem sintetiza a importância do presente estudo “que faltava à série de trabalhos que Albérico Afonso vem publicando sobre a história da cidade e do concelho de Setúbal […]. Uma Setúbal operária e popular apertada entre o desemprego, a miséria e a opressão quotidiana”.
É frente a este cenário que se acentuará o clima de terror e perseguição política por todo o País que, todavia, como lembra Fernando Rosas no já referido prefácio, tivera início, logo com a instauração da Ditadura [“Nacional”] Militar, conduzida pelo general Gomes da Costa, após 28 de maio de 1926.
A leveza ou intencionalidade acrítica com que alguns tentam interpretar o posicionamento do regime português sob Salazar durante, por exemplo, a II Guerra Mundial (1939-1945), confronta com a análise do Historiador que, no probo exercício do seu ofício, sem colocar de lado a perceção geral dos acontecimentos, atende ao particular de determinada povoação, cuja realidade não deixa de espelhar o conjunto do País. É o caso do Autor desta obra que, por exemplo, no subcapítulo intitulado “Os efeitos da II Guerra, em Setúbal” uma vez mais, tendo por base fundos documentais inquestionáveis, descreve a Cidade que “vive de forma particularmente intensa a conjuntura” bélica e as condições em que se encontra a maioria da sua população, a qual “sofrerá de uma forma brutal as consequências” do conflito: “O desemprego, a carestia de vida, os açambarcamentos e os baixos salários, particularmente na indústria conserveira, pauperizam e deixam em grandes dificuldades as classes populares”.
Com notória integridade de análise e de narrativa, apresentando factos comprováveis, não deixa Albérico Afonso de sublinhar que não havia entre todas as figuras que orbitavam no interior do salazarismo, uma adesão incondicional, impeditiva de reprovação, acompanhada esta, certas vezes, de propostas sociais que Salazar e, depois, Marcelo Caetano só tardia e timidamente viriam, aqui e ali, a acolher, mesmo que mitigadas. Procede assim, ao carrear para este trabalho o corajoso relato ainda que, de algum modo isolado e circunscrito, secretamente confidenciado em missiva particular a amigo, manuscrita pelo Dr. José Guilherme de Melo e Castro [1914-1972], Governador Civil de Setúbal entre 27 de outubro de 1944 e 12 de maio de 1947.
Trata-se de um caso deveras curioso, para além de relevante, pois é protagonizado por uma figura grata ao regime, a quem ficámos a dever, no entanto, um relato cáustico, desassombrado, da calamitosa situação de Setúbal durante a II Grande Guerra: (“Isto é o pior que há em Portugal”, escreverá). Situação acerca da qual declarou também ter “fotografias e elementos de arrepiar”. Salazar, pelo ano de 1944 (o mesmo da tomada de posse de Melo e Castro), incumbiria os Governadores Civis, de elaborarem circunstanciado relato sobre “as correntes de opinião política existentes na sede de distrito e nos concelhos” e, de prestarem “informações pessoais ou coletivas sobre atividades suspeitas”: o terror e a perseguição tentavam então, a todo o custo, ocultar a dramática realidade local.
Temos presente, porém, que este livro não se propõe destacar personalidades que do interior do regime ditatorial, por alguma forma, o contestariam; relata, sobretudo, a coragem de muitos outros que, na margem consequente daquele, se lhe opuseram, comprometendo a própria vida e a de suas famílias. É assim que, completando o volume de 431 densas páginas, chegamos ao capítulo “Sínteses biográficas dos presos políticos setubalenses (1933-1949)”, testemunhas e opositores ativos ao regime no período considerado: nada menos que duzentas e quarenta e três entradas alfabeticamente ordenadas, bem como uma circunstancial cronologia daquele mesmo arco temporal. De louvar é, também, um sempre útil índice remissivo.
Um relato pari passu do quotidiano da cidade que a um mesmo tempo evoca e homenageia a determinação, a coragem e a consciência política de destacáveis setubalenses, na dura luta contra a opressão e a miséria social que, em verdade caracterizaram longos anos da história portuguesa nossa contemporânea.
“Setúbal sob o Estado Novo. A Resistência a Salazar”, na coleção “História”, com a chancela da Editora Estuário em colaboração com a Câmara Municipal de Setúbal é, enfim, um trabalho de pesquisa histórica de fundamental referência investigativa futura.