Hoje vamos falar do senhor José Francisco Morcego. Para esse efeito, foi fundamental a colaboração do seu filho e meu querido amigo Mário Morcego.
José Francisco nasceu em Alcácer de Sal, a 9 de Junho de 1946, tendo estudado até à 4ª classe.
Aos 15 anos foi viver para Lisboa, onde começou a trabalhar numa empresa de tractores, camiões e carros DAF (carros de corrida) na rua Stº. António à Estrela.
Aos 17 anos regressou ao Alentejo para trabalhar com tractores na agricultura, lavoura e plantação de eucaliptos.
Em 1966, casou com Maria Gonçalves Martins. Nesse mesmo ano, nasceu a sua filha Anabela.
Em Março de 1967, foi chamado para o serviço militar, fazendo a recruta em Beja, após o que veio para Santa Margarida em Abrantes, onde tirou a especialidade de máquinas, dada a sua experiência anterior na agricultura.
Aí deu instrução, tendo sido promovido a cabo, na Companhia de Engenharia 2349.
Em Janeiro de 1968, foi destacado para Moçambique, no navio Niassa, um cargueiro adaptado ao transporte de tropas e de material de combate.
A viagem entre Lisboa e Nacala durou um mês, com passagem por Luanda e Lourenço Marques (actual Maputo). O barco encalhou na baía de Luanda, com a maré baixa.
De Lourenço Marques seguiram viagem de barco até Nacala, daí para Vila de Nova Freixo, onde havia uma base da Força Aérea e em coluna até Marrupa.
José Francisco tinha como principal função manusear máquinas de terraplanagem para as estradas, pontes e pistas de aviação. Sem alcatrão, somente com a utilização de saibro, de excelente qualidade.
O dia típico era passado nas terraplanagens, mas sempre armado. Perto da cadeira da máquina tinha a espingarda G3, com carregadores e granadas.
Cada pelotão de engenharia tinha uma coluna que lhes fazia escolta.
Deslocavam-se sempre para Norte, junto à fronteira com a Tanzânia, por onde circulavam os elementos da Frelimo. A vegetação era constituída por mato cerrado e capim.
A Frelimo destruía as pontes para evitar movimentações.
A alimentação normalmente era escassa, com uma lata de sardinhas para um dia. Uma lata de fruta ocasionalmente.
Para enriquecerem a dieta, iam à caça a noite. Apanhavam gazelas, búfalos. Usavam as espingardas Mauser.
A Frelimo atacava regularmente, numa guerra de guerrilha com a utilização de inúmeras minas e armas diversas, de fabrico soviético.
Existia muito confronto directo, chegando a estar encurralados dos dois lados. Davam as coordenadas à aviação e estes atacavam.
Muitos elementos da Frelimo capturados tinham estado em formação militar na União Soviética. Alguns eram especialistas em minas, com uma destreza superior aos especialistas lusos, evidenciando formação em terras soviéticas.
Em Março de 1970, José Francisco regressou à metrópole, a bordo do navio de passageiros Vera Cruz.
O seu capitão Cecílio Gonçalves queria que continuasse a carreira militar, o que recusou.
José Francisco ficou farto da guerra. Considera que foram dois anos perdidos.
O seu corpo agita-se, os olhos brilham-lhe quando me mostra um álbum repleto de fotografias, tiradas do outro lado do tempo.
As fotos são impressionantes. Maquinaria diversa, pesada, de excelente qualidade, destruída pelas minas.
Sempre teve uma opinião negativa da Guerra Colonial. “Aquilo não era nosso, era deles. Foram precisos milhares de mortos e danos materiais”.
José Francisco sempre teve a noção que estavam a combater a guerra errada.
Tiveram que “gramar a bucha”, como salienta.
Segundo a sua opinião, a guerra nivela as hierarquias militares. Com os oficiais era tu-cá-tu-lá. A guerra faz perder os pretensiosismos, unidos no desejo comum da sobrevivência.
As balas e as minas não escolhem hierarquias.
A sua mulher Maria assiste à conversa. Os olhos evidenciam preocupações e angústias passadas que o tempo não desvaneceu.
Maria escrevia regularmente aerogramas e cartas
Em Abril de 1970, mudaram-se para Setúbal, tendo José Francisco ido trabalhar para uma fábrica de pintura de jantes de automóveis.
José Francisco encarou o 25 de Abril com toda a naturalidade e, sobretudo, como uma inevitabilidade, cuja grande vantagem foi ter acabado com a Guerra Colonial.
A parte mais dolorosa chegou no fim, quando nos despedíamos; José Francisco salientou que na viagem de regresso no “Vera Cruz”, o navio parou em Lourenço Marques e mais tarde em Luanda, para carregar centenas de caixões de militares portugueses mortos em combate que foram acondicionados no porão.
Caro senhor José Francisco. Uma grande honra e enorme privilégio poder contar com a vossa distinta presença e com a riqueza da sua narrativa.
Muito obrigado. Um grande abraço