O coxear da esquerda

O coxear da esquerda

O coxear da esquerda

18 Fevereiro 2018, Domingo
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Andre Vltchek é um analista político norte-americano, filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu guerras e conflitos em dezenas de países
No seu sítio Web ele escreveu um artigo interessantíssimo, onde afirmava (….)” que “a esquerda europeia traiu, já nos anos 80 do século passado, os ideais do progresso, tornando-se demasiado maleável, demasiado disciplinada, demasiado cautelosa e demasiado centrada em si própria. Colocou o pragmatismo acima dos ideais. Rapidamente adoptou o léxico do establishment liberal, completado com as concepções ocidentais de direitos humanos, princípios democráticos e correcção política. Deixou de ser revolucionária; no essencial, cessou toda a actividade revolucionária e abandonou o elemento central de qualquer verdadeira identidade de esquerda – o internacionalismo”.
Na verdade, com algumas excepções, a esquerda partidária queimou, há muito, as bandeiras revolucionárias, pelo menos metaforicamente. Boas velhas palavras de ordem foram descartadas. Agora, em vez de marchas, manifestações e confrontos com os causadores das crises e das desigualdades sociais, esta esquerda prefere sentar-se confortavelmente nos sofás dos diversos estúdios de TV tentando convencer, em vão, os seguidores da troika e votando favoravelmente os orçamentos previamente autorizados por Bruxelas.
Raramente esta esquerda denuncia as desigualdades sociais e a forma como é feita a distribuição primária e secundária da riqueza. Não dizem, por exemplo, que em Portugal os trabalhadores por conta de outrem (82,2% da população empregada, correspondente a 3.787.200 pessoas) recebiam em salários e ordenados (2016) 34% do PIB, enquanto 4,7% da população empregada (220 mil pessoas) recebiam 43% do PIB.
Se falarmos na distribuição secundária da riqueza (em sede fiscal), a esquerda não diz que, em 2015, os trabalhadores e pensionistas contribuíam com 91,54% de todos os rendimentos declarados em sede de IRS, enquanto os patrões contribuíam com 2,77% dos rendimentos declarados (categorias E, F, G).
Esta esquerda esconde que, anualmente, a fuga de impostos de Portugal para paraísos fiscais (mais de 20 mil milhões de euros) corresponde a mais de duas vezes o pagamento com juros da dívida e o correspondente a mais de dois orçamentos para a saúde.
Esta esquerda bem comportada e instalada aceita, em nome da reversão de salários e pensões, a anulação da baixa de impostos directos pelo aumento dos impostos indirectos, além de transigir, sem determinação e firmeza, na exigência de reposição do poder de compra perdido pelos trabalhadores portugueses nos últimos anos.
A diferença abismal entre o pagamento em salários e pensões e o excedente bruto de exploração é de tal forma desequilibrado que não se compreende como esta esquerda ocidental e bem comportada abdica de gritar contra as desigualdades sociais.
Na Europa, cerca de 25% dos jovens estão em risco de pobreza; 20% não têm emprego e o salário que usufruem é inferior a 60% da média europeia. Não se vê a esquerda denunciar e combater esta realidade, sendo preciso Christine Lagarde, directora-gerente do FMI, vir dizer que “a geração de sonhos adiados passará a geração de sonhos enterrados”.
É triste ver em Portugal mais de 2.175.320 pessoas (21,1% da população portuguesa) a viver abaixo do limiar de pobreza sem que a esquerda exija o aumento do salário mediano e o combate frontal contra a pobreza.
A direita apologista da escola de Chicago não me surpreende que omita o combate contra as desigualdades de rendimento e de riqueza, agora da esquerda, alegadamente defensora dos trabalhadores, dos reformados, dos desempregados, dos sem emprego e dos pobres, é que não esperava uma tal passividade.
Estamos na presença de uma esquerda que combate, e bem, por algumas reversões de salários e pensões, exige melhores condições de negociação colectiva, mas transige em questões estruturais como as desigualdades de rendimento e de riqueza. Sem ir ao fundo da causa e origem das desigualdades sociais, ficamo-nos pelas aparências visíveis dos fenómenos, abdicando de explorar a face oculta dos mesmos. É como querer apanhar o peixe na superfície, quando ele anda bem no fundo do oceano. A esquerda não pode continuar a coxear tanto.
Nota: A fonte dos dados financeiros é do INE (Instituto Nacional de Estatísticas)

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