Caro leitor, se não anda distraído já notou o frenesi autárquico: obras por todo o lado (umas de fachada, outras não, algumas assim-assim) e promessas de milhões de euros de investimentos. Os autarcas andam numa roda-viva pelas freguesias e lugarejos, com os putativos (ou confirmados) candidatos aos diversos lugares de eleição nesses locais e anunciam os «euromilhões» que farão entrar, definitivamente, esses lugarejos (e os concelhos) na modernidade do século XXI.
Nos primeiros anos dos actuais mandatos (desde Outubro de 2013) queixavam-se do abandono por parte poder central – o Pai-Natal dos fundos salvadores. Como «o tempo tudo cura menos a velhice e a loucura», diz o povo, eis que o Pai Natal dos deserdados (acolitado pelo super-Pai Natal de Bruxelas e seu saco de prendas Portugal 2020) abriu os cordões à bolsa para felicidade terrena de todos: os autarcas viram aumentar a hipótese de ser eleitos; os munícipes viram, finalmente, ser realizados, às vezes mal e apressadamente, muitos melhoramentos de que necessitavam como de pão para a boca.
Com mandatos de quatro anos e, por vezes, continuidade dos executivos (presidentes e vereadores) em eleições sucessivas, a concentração de obras no último ano só se compreende pelo receio de que os ingratos eleitores se esqueçam dos benefícios nos primeiros três anos, mas se lembrem das faltas de tantas coisas básicas: um sinal de trânsito; uma passadeira para peões; a reparação de um passeio ou de um troço de estrada; a marcação das ruas e estradas (prática quase caída em desuso); a ligação de uma rua ou bairro à rede viária; a ligação de prédios ou bairros inteiros à rede de esgotos; etc.
Estas disfunções de uma boa gestão autárquica (simples, justa, humilde, em permanente ligação com os munícipes, os seus anseios e necessidades) resultam, essencialmente, da falta de massa crítica que permita pensar o trabalho com suficiente reflexão: o que se deseja para os concelhos e as formas de o concretizar. Em vez disto há, tantas vezes, uma gestão do tipo «navegação à vista», respondendo casuisticamente às exigências daqui ou de acolá, crente de que alguns truques chegam para iludir os munícipes – «para quem é bacalhau basta» – diz outro ditado popular. As respostas a esta visão curta têm vindo na volta do correio, nas sucessivas eleições onde a alta abstenção devia ter feito disparar as campainhas de alarme há muito tempo, quer dos autarcas, quer das oposições e candidatos de todas as forças políticas. Nem toda a culpa é dos autarcas – a falta de participação e de responsabilidade cívicas é, talvez, a marca mais vincada da nossa forma de estar em sociedade, como refere Jorge Humberto Silva no artigo «50 maneiras de deixar (mal) o país», no jornal Semmais de 29 de Abril último –, mas muita lhes cabe, pois deviam fazer pedagogia junto dos munícipes, com base na boa gestão centrada na satisfação das suas necessidades.
Mas só criticar não basta, além do comportamento e empenhamento cívicos responsáveis, é preciso também estar atento ao que de bom se faz, às surpresas agradáveis, que, embora ainda poucas, não se devem ignorar sob pena de sermos derrotistas e sectários: refiro-me ao Plano de Mobilidade de Setúbal (em que se insere a exemplar acção da câmara ao longo de todo mandato na reabilitação do espaço público (passeios, passadeiras de peões, ciclovias, ruas, estradas, etc.) e ao Plano Estratégico de Desenvolvimento Setúbal 2026 (o quadro orientador da acção sobre o futuro da cidade e do concelho). E não falo no Programa de Regeneração Urbana do Centro Histórico, no Programa Integrado de Valorização da Zona Ribeirinha e no Programa Integrado de Participação e Desenvolvimento da Bela Vista.
Já critiquei a Câmara de Setúbal em muitos aspectos da sua acção – a inadmissível teimosia na taxa máxima do IMI é a mais flagrante – pelo que estou à vontade para a elogiar de forma isenta: não tenho dependências de nenhum tipo.
Comparar a sua visão estratégica (p. ex., nos dois Planos que referi) com a «navegação à vista» que se vê noutras autarquias é como comparar caviar com carapau de gato.