A compra do amor: memórias da Clássica

A compra do amor: memórias da Clássica

A compra do amor: memórias da Clássica

28 Janeiro 2022, Sexta-feira
Gonçalo Naves

Nesta quinzena consigo a exigente proeza de resistir a escrever sobre as dinâmicas políticas, as da atualidade e as futuras, e estranhamente sinto uma predisposição para invocar alguns professores que tive na FDUL, vulgo Clássica, escola de muitos ensinamentos intelectuais e de parcas – mas decisivas – lições emocionais.

Recordo-me da minha professora de Direito da Família, provavelmente a cadeira que com maior veemência desgostei. No entanto, e para, como por lá se exigia, ser nesta sede rigoroso, não é exatamente a professora que venho lembrar, mas sim as frases que disse numa memorável aula que decorreu em maio, num fresco e aberto maio.

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A referida, de profissão notária e de vocação professora, como dizia, quebrou a certo momento um silêncio longo com um reto e pontiagudo diagnóstico, em abstrato sem contexto e que para muitos se afigurou ardiloso: “Os meus alunos nunca se esqueçam desta frase da vossa professora de Família.

Nos adultos, a generalidade das relações amorosas têm somente um móbil: o dinheiro que os atuais ou futuros cônjuges têm ou podem vir a ter”. Eu, que uns meses depois me viria a deparar com a deliciosa, rara e à data incógnita leitura de “As mãos sujas”, de Sartre, viria assim a compreender, com os devidos e naturais retroativos efeitos, que ao dia daquela aula de Família padecia de uma condição que sem prejuízo de na juventude não ser rara, era já menos comum quando em comparação com os meus colegas: o idealismo.

A vida foi-se desenrolando e perante certos solavancos recordo-me com alguma frequência da minha professora de Direito da Família – ou só de Família, como se dizia -, da sua imagem invernosa e distante, do que avançou solene naquela solarenga e quase exótica manhã de maio e sobretudo do que deixou em nuvem, no ar, pairando, pingando sobre os alunos que acharam naquela sua retórica um entrave ao utopismo que procuravam semear.

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Pergunto-me se ainda permanecerá atrás da secretária, de pé e curvada, com os nós dos dedos apoiados sobre a mesa e a prosseguir no processo de fuzilamento dos sonhos dos novos alunos: “Reparem, se quiserem comprar amor podem fazê-lo de várias maneiras diferentes, vejam”, e de seguida entrando de fininho na sala a professora de Obrigações para concretizar a diferença entre as prestações em espécie e em dinheiro:  “As obrigações podem ser em espécie ou em dinheiro.

Aquelas podem ser pagas, por exemplo, com uma mala ou umas botas, e estas em numerário, título de crédito ou transferência bancária”. No fim da aula, e para fechar o sumário, recordo-me da minha professora de Direito Internacional Privado, mulher bondosa e talvez a única que represento com verdadeira saudade: “Se vocês forem brasileiros, um dos vossos amantes ricos for, por exemplo, porto-riquenho e se se encontrarem nos Estados Unidos, qual é a lei aplicável?”.

No entanto, e sem prejuízo de no meio de tudo nunca me perder no duro mas inevitável processo de destruição do nosso romantismo, a derradeira lição que invoco hoje mesmo, antes de subir, é a do professor Tiago, que lecionava Direitos Reais, um homem que tinha sistemática e melancolicamente o fundo dos olhos cheios de chuva e que no fim de uma tarde de sexta-feira, às seis horas e depois de nos entregar as duríssimas frequências do semestre, olhou pela janela um avião que acabava de descolar e sobrevoava o Campo Grande: “Não se esqueçam. No Direito, estudar muito. Na vida, separar o trigo do joio.” Tinha razão, senhor professor, tinha razão.

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