3 Maio 2024, Sexta-feira
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Recordar Ana de Castro Osório e Paulino Oliveira

Muito recentemente, como O Setubalense oportunamente noticiou, o nosso colaborador Giovanni Licciardelo publicou uma obra dedicada a duas das maiores personalidades da história portuguesa contemporânea, ligadas a Setúbal. O texto de Viriato Soromenho-Marques que agora se publica serviu de prefácio a esse livro, e constitui um convite para a leitura dessa obra.

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Este livro de Giovanni Licciardelo despertará nos seus leitores diferentes emoções e horizontes de reflexão, pois o seu registo de escrita, sem nunca perder clareza e transparência, contém diversas camadas de sentido no seu processo de elaboração.
A leitura destas páginas evocou-me a mensagem póstuma fundamental do grande pensador judeu-alemão, Walter Benjamin (1892-1940), no seu texto sobre filosofia da história, deixado incompleto pela sua morte prematura durante a sua tentativa frustrada de escapar à perseguição nazi, numa França derrotada pelas tropas de Hitler. Para Benjamin, o maior erro dos tempos modernos é a fixação no mito do progresso, que se transformou numa ilusão que afeta perigosamente a nossa capacidade de nos orientarmos no tempo, perturbando a nossa competência para identificar os perigos, as ameaças, e as oportunidades ocultas nessa fina película temporal designada como presente. O Autor deste livro também concorda com a ideia de que o passado – incluindo todas as suas facetas de sofrimento, dor e injustiça – é um tesouro que deve ser protegido. Recordar as vidas daqueles que são as nossas raízes é uma vitória contra a marcha inexorável do esquecimento, um gesto de gratidão, e uma condição essencial para não repetir os erros que medram na ignorância do olvido, e no indigente descuidar daquelas zonas de sagrado que, indivíduos e sociedade, devem alimentar, se quiserem continuar a saber quem são e para onde vão.
Nesta obra, o Autor presta uma homenagem à sua falecida esposa, e a duas figuras maiores da sua ilustre família. Nesse movimento, em que o luto se transforma em ato criador, presta-se também um serviço cultural ao país e à cidade de Setúbal, pois Ana de Castro Osório e Paulino de Oliveira são estrelas com luz própria, uma luz que se projeta e difunde para além do espaço e do tempo familiares.
Giovanni Licciardello, engenheiro do ambiente por formação académica, assume-se neste seu terceiro livro como um autêntico cultor da história contemporânea. Este ensaio resultou de um longo labor de pesquisa, envolvendo a consulta de praticamente toda a bibliografia disponível sobre os dois biografados, bem como o recurso aos testemunhos documentais e orais colhidos juntos de sucessivas gerações da família gerada pela união das duas personalidades visadas. O leitor será, por isso, confrontado com propostas novas de interpretação para áreas de sombra deixadas por estudos anteriores, o que constitui uma clara mais-valia desta obra.
O método do historiador ajuda a prevenir o risco de tombar em apologia, ou mesmo hagiografia, na narrativa construída, que não se adequaria à dimensão profundamente humana das duas personalidades abordadas, onde há, inevitavelmente, lugar para o erro de análise e para a incoerência pontual na conduta. Aliás, o Autor jamais se priva de expor essas facetas menos brilhantes, ou de manifestar a sua opinião discordante em relação a algumas das teses sustentadas pelas figuras, cuja vida aqui é estudada.
Paulino de Oliveira (1864-1914) aparece-nos como um homem exuberantemente do seu tempo. Jornalista marcante na história sadina, poeta e político republicano, com a desmesura política da época, onde a violência física acompanhava demasiadas vezes o combate argumentativo. Os seus gestos exaltados, levá-lo-iam a ações temerárias no período do Ultimato britânico, a um curto período de prisão, e mais tarde ao exílio no Brasil, depois de um golpe republicano falhado, dias antes do trágico regicídio. Essa impetuosidade levaria Paulino de Oliveira a gestos de que se arrependeria, mas cujo conteúdo, ultrapassando o âmbito deste breve prefácio, será desenvolvido nas páginas que se seguem.
Ana de Castro Osório (1872-1935) é uma mulher de todos os tempos. Pioneira perante os seus contemporâneos, continua a surpreender pela originalidade, criatividade, empenho, inteligência que ficam impressas em tudo aquilo em que tocou. Desde muito cedo encantou pelo seu brilho, precocidade e intuição, por vezes proféticas. Como não compreender o impulso apaixonado que trouxe, em 1893, o grande poeta Camilo Pessanha a Setúbal para pedir a sua mão? Fez da literatura infantil um género autónomo ligado às tradições da cultura oral e tradicional, tendo colaborado com José Leite Vasconcelos, o pai da nossa etnografia. Foi uma dedicada teórica e praticante da pedagogia e da educação como políticas públicas. Fundadora do feminismo como ideia e ação no nosso país, juntou-se ao partido republicano, certamente também pela influência de seu marido, até perceber que no seu élan interno, pintado de um jacobinismo patriarcal e de vistas curtas, não haveria quase nada a esperar no que aos direitos das mulheres diz respeito. No final da leitura, o leitor concordará, certamente, com a proposta do Autor de elevar os restos mortais de Ana de Castro Osório ao Panteão Nacional.
Termino aqui estas breves palavras de convite à obra que de seguida se abre ao olhar interessado. Saúdo, por isso, o Autor e os leitores pela viagem de alargamento do conhecimento da nossa história coletiva que em conjunto estão prestes a iniciar.

Viriato Soromenho-Marques
Professor da Universidade de Lisboa
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