23 Abril 2024, Terça-feira
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(Des)alojamento local

Em plena crise da habitação tenho uma playlist que começa com a música Não sei o que é que fica d’A Garota Não. Canta-nos ela “Começam os guests, fome é infinita. Mais um AL, orgulho nacional Corrida sem lei, onde vais Portugal?”.
E de facto para onde vamos nós quando já não conseguimos morar em Lisboa, em Almada, no Seixal, em Setúbal, em Palmela, em lado nenhum? Para onde vão as nossas comunidades locais quando as cidades estão a ser varridas pelo turismo desenfreando? Para onde foi a vizinha, despejada para fazer-se mais um duplex em alojamento local? Para onde vai o direito a uma casa para viver? É o orgulho expresso de uma política de interesses – local e nacional – que está sempre preocupada com onde vão dormir os turistas, mas nunca com onde vão viver as pessoas.
No passado dia 20 de março a Câmara Municipal de Almada aprovou, por unanimidade, a proposta da vereação do Bloco de Esquerda para a realização de um Estudo Urbanístico e Turístico com vista à elaboração de um Regulamento Municipal de Alojamento Local. A proposta visa ainda a criação de um instrumento municipal de fiscalização do Alojamento Local em frações licenciadas para fins habitacionais, inativos ou clandestinos.
Esta é uma reivindicação do Bloco em Almada há mais de 6 anos. Foi uma das minhas primeiras intervenções enquanto vereadora nesta Câmara Municipal, exclamando a necessidade de regular o Alojamento Local. E os últimos anos deram-nos razão. As rendas no distrito de Setúbal têm subido o dobro do ritmo de Lisboa e o turismo avassala a dinâmica económica, social e habitacional das populações.
Entre 1 de janeiro e 18 de abril de 2023, o concelho de Almada teve 199 novos registos de Alojamento Local. Mais dois e ultrapassamos o número de todo o ano de 2022. Mais onze e ultrapassamos o ano de 2019. São já 1.437 no total, mais do Sintra, Braga, Oeiras ou Matosinhos, e quase a superar Vila Nova de Gaia.
Não há dúvidas: os tentáculos de um turismo insustentável está a apertar o pescoço de Almada, e vai seguir pela margem sul abaixo. Engana-se quem pensa que este problema e a crise da habitação restringem-se a Lisboa ou ao Porto. Quem procura uma casa para arrendar sabe que isso é mentira.
O Alojamento Local é uma das várias expressões da liberalização selvagem do mercado imobiliário, da financeirização da habitação e a glorificação cega do turismo, promovidas pelo PSD/CDS e mantidas pelo PS. Mais fácil de licenciar, sem ter de obedecer às mesmas regras de outros empreendimentos turísticos e sujeição ao mesmo escrutínio público, a flexibilidade do Alojamento Local beneficia apenas os investidores. Passaram, legalmente, a poder alugar casas a turistas e a consumidores temporários em detrimento dos moradores, cobrando rendas diárias de valores elevados. Assim se promoveu a casa no mercado imobiliário como um “investimento ideal” para turismo. O negócio de alguns, que compromete o bem comum e que não serve a população no direito à habitação.
E isto sobretudo porque este é um negócio de grandes empresas e proprietários. Nada nos move contra o verdadeiro alojamento local, de quem tem um quarto vago durante o ano ou a casa durante as férias, mas é não mais a realidade. São fundos imobiliários que adquirem casas de frações de habitação que antigamente serviam para o arrendamento tradicional ou estudantil, colocando-as permanentemente ao serviço do turismo, contribuindo para o despejo de residentes.
A narrativa alimentada pelo lobby imobiliário e pela direita é de que há falta de casas no mercado. Mas o problema não é a oferta, mas sim o uso indevido das habitações existentes para outros fins.
O reforço do parque habitacional público deverá contemplar diversos instrumentos, nomeadamente a construção, sobretudo quando enquadrada num planeamento urbanístico, social e ambiental que fomente novas centralidades. Contudo, se a construção de nova habitação é um processo demorado e dispendioso, não responde diretamente à especulação provocada pela malha habitacional já existente que não está a cumprir a sua função: a de habitar.
Conforme há cada vez mais casas a serem utilizadas para o alojamento turístico, cada vez menos casas existem para o arrendamento normal e a valores que a população possa pagar. Durante a pandemia, quando a atividade turística estava suspensa e havia menos procura por Alojamento Local verificaram-se muitas mais casas disponíveis no mercado de arrendamento do que hoje. Em 2020, a evolução do valor das rendas, ainda que tenha continuado a subir, desacelerou. Quando o turismo regressou, as casas voltaram a ficar mais caras, a um ritmo mais frenético, provando-se o seu papel especulativo.
Levantam-se ainda conflitos com a sustentabilidade da economia local ou o aumento da sujidade e do ruído no espaço público. Mas sobretudo sentem-se as consequências sociais, comunitárias e interpessoais quando quarteirões e prédios inteiros são transformados, expulsando os residentes, especialmente idosos, esvaziando comunidades e transformando os centros das cidades em condomínios de luxo. Onde fica o tecido social, a vizinhança e os laços dos nossos bairros?
Não podemos esperar por 2030, quando o Governo vai só aí considerar o que fazer com as licenças de Alojamento Local. A crise é agora. Os despejos não param. As rendas aumentam. As cidades ficam sem moradores.
A expansão desregulada do alojamento local retira a real função da habitação, e impede as pessoas de habitar o concelho. Habitar num sentido de permanência, de vivência quotidiana, de decisão sobre o território, de comunidade. Pelos jovens, pelas famílias, pelos trabalhadores, pelos migrantes, pelos idosos que são vítimas das rendas proibitivas, privados do direito à habitação.
As políticas não podem apenas andar a correr atrás do prejuízo. Não queremos e não podemos deixar que a situação da freguesia de Santa Maria Maior – onde 60% das casas desta freguesia estão em Alojamento Local e onde em quatro anos a população reduziu-se para mais de metade – se repita. Há muita coisa a fazer: aumentar e reabilitar o parque habitacional público, acabar com os privilégios fiscais, fechar a portas aos fundos imobiliários, proteger os inquilinos com contratos de arrendamento estáveis, e muito mais.
E o mínimo a fazer é impedir a redução definitiva do número de casas disponíveis para habitação, algo no qual os municípios têm competência, travando a monocultura do turismo. Almada, por proposta do Bloco, vai ter o 3º regulamento municipal de Alojamento Local do país, e propostas como esta vão se multiplicar pela margem sul. Não queremos uma margem de especulação, queremos casas para viver.
A música d’A Garota Não que abre a minha playlist da crise da habitação também tem um verso do Chullage, que em quatro rimas faz o resumo do desespero do país: “Desalojamento local p’ra alojamento local. No mínimo é paradoxal, e agora este local é igual a qualquer outra capital.”

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