Entre outros alegados actos ilícitos, foi apurada “a acumulação indevida de ajudas de custo com despesas pagas por cartão de crédito”
“Foram pagas despesas com ajudas de custo nos recibos de vencimento que não foram documentadas com os respetivos boletins de ajudas de custo, resultando numa discrepância entre os mesmos de 18.788,48€, que a ex-presidente recebeu a mais nos recibos de vencimento sem (a devida) prova documental”. Esta é uma das principais conclusões da auditoria externa que aponta o crime de peculato a Maria das Dores Meira, durante o último mandato da ex-autarca à frente dos destinos da Câmara de Setúbal.
O resultado da auditoria, à qual O SETUBALENSE teve acesso, foi conhecido na última sexta-feira. Nesse mesmo dia, a Câmara Municipal enviou o relatório da auditoria à Polícia Judiciária, a pedido desta entidade, e vai enviá-lo também para a Inspeção-Geral de Finanças, disse o gabinete da presidência da autarquia a O SETUBALENSE.
Realizada pela Júlio Alves, Cabral, Saraiva & Associado, Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, Lda., a auditoria teve por base “a análise dos movimentos bancários de todos os cartões de crédito do município, dos boletins itinerários, pagamento de ajudas de custo, bem como os extratos de portagens rodoviárias no período compreendido entre 1 de janeiro de 2017 e 31 de outubro de 2021”.
No referido período, conclui-se na auditoria, a atuação da então presidente da Câmara de Setúbal, Dores Meira, revelou-se “desconforme com diversos normativos legais e regulamentares”, designadamente com o “Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais (POCAL)”, face à “inexistência de um sistema de controlo interno eficaz, no que respeita à utilização dos cartões de crédito, movimentos bancários não devidamente documentados e insuficiente segregação de funções”. Mas também com o “Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas”, por “incumprimento dos princípios de fiabilidade e regularidade da informação financeira”, em virtude da “omissão de suporte documental adequado em diversas operações”, e ainda com o “Regime Jurídico das Autarquias Locais”, ao constatar-se “a duplicação de ajudas de custo com despesas de representação e a realização de pagamentos sem prova de interesse público direto”.
São dados como factos apurados “a acumulação indevida de ajudas de custo com despesas pagas por cartão de crédito, utilização de verbas municipais para fins de natureza pessoal ou recreativa e ausência de documentos justificativos para diversos movimentos bancários”, que “configuram potenciais violações dos princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da economia, da eficiência e da eficácia, consagrados no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 5.º do Código do Procedimento Administrativo”.
No final, é sublinhado que “a apropriação indevida de património público, que lhe tenha sido confiado pelo desempenho de funções para as quais foi eleita/mandatada é crime de peculato”, conforme definido “no artigo 375.° do Código Penal”.
Dores Meira: “Não cometi nenhum crime”
Entre os vários pontos relatados na auditoria é indicado que “existiram várias viagens em que foram efetuadas despesas no estrangeiro e ao mesmo tempo a presidente apresentou boletins de ajudas de custo, totalizando despesas de cartão de crédito de 23.885,82€ e ajudas de custo de 8.812,29€”.
“Por exemplo, de 1 a 7 de setembro de 2019, houve uma viagem ao Senegal no âmbito do Clube das Mais Belas Baías do Mundo, em que a presidente apresentou o boletim de ajudas de custo da respetiva viagem e, cumulativamente, existiram várias despesas efetuadas com o cartão bancário. De 7 a 22 de outubro de 2019, numa viagem ao Japão, no mesmo âmbito da viagem realizada ao Senegal, foram apresentados e liquidados boletins de ajudas de custo a juntarem-se a despesas (registadas) no cartão bancário superiores a 2.000,00€”, lê-se no documento.
Outro dos pontos do relato da auditoria indica que “foram registados gastos em portagens, parques de estacionamento e ferries nas viaturas do município no distrito de Setúbal, sendo que no mesmo período a presidente auferiu rendimentos, pagos pelo município, pelas deslocações realizadas em viatura própria, totalizando gastos de Via Verde de 1.554,30€ e despesas de ajudas de custo de 27.319,25€”.
Em comunicado divulgado na rede social Facebook, Dores Meira reitera que não cometeu qualquer crime e que está a ser alvo de perseguição política e de uma tentativa de assassinato de caráter. “Esta auditoria é a continuação da perseguição política que teve o seu início quando anunciei que seria candidata à Câmara Municipal de Setúbal. Serve apenas para me visar e perseguir politicamente. É uma tentativa de assassinato de carácter, por parte dos meus opositores políticos, para tentarem tirar vantagens eleitorais”, reagiu a ex-autarca, que garantiu desconhecer o resultado da auditoria.
“Não me foi facultada, nem sequer fui ouvida na mesma. Muito menos me foi dado acesso ao processo ou a possibilidade de verificar a transparência do mesmo. É uma arma política em plena campanha eleitoral. Querem travar a nossa vitória no dia 12 de outubro. Estranho que uma ‘auditoria’ que vise apenas a minha pessoa saia a 30 dias das eleições autárquicas. Reforço que não cometi nenhum crime – ao contrário do que é especulado na auditoria encomendada. Não me revejo nesta forma cobarde de fazer política”, afirmou ainda na mesma publicação.
A auditoria foi realizada por proposta dos vereadores do PS, que foi aprovada por unanimidade pelo executivo municipal, constituído por cinco eleitos da CDU, quatro do PS e dois do PSD.
Os vereadores do PS afirmam que a auditoria foi realizada “a todo o executivo” do mandato 2017/2021, não apenas a Dores Meira, e que o resultado veio comprovar que havia “fundamento” para que a tivessem proposto em reunião de câmara. E consideram incompreensível “a inércia de André Martins, presidente da autarquia e na altura dos factos presidente da Assembleia Municipal, no apuramento da verdade, a qual só se pode enquadrar na dificuldade em justificar que a sua camarada, militante do PCP e [então] presidente da Câmara eleita pela CDU no período em referência, esteja agora a contas com a justiça pela prática de actos que consubstanciam os crimes de peculato, abuso de poder e enriquecimento ilícito”.
Reações PS ataca André Martins e vereador do PSD deixa apelo crítico
“Embora em planos diferenciados, Dores Meira e André Martins terão de responder à justiça e aos setubalenses”, afirmam os socialistas.
André Martins não quis reagir, para já, nem ao resultado da auditoria nem às afirmações do PS a O SETUBALENSE.
Já Fernando Negrão, vereador do PSD – partido que, a nível nacional, decretou apoio à candidatura independente de Dores Meira à Câmara de Setúbal para estas autárquicas –, deixa implícito que a ex-autarca merece ser penalizada nas eleições de 12 de outubro. “Faço um apelo aos eleitores para que no acto de votar não deixem de ponderar comportamentos ilegais ou menos éticos. Começa ser preocupante a insistência nestas práticas por parte da candidata. Assim como começa a ser preocupante a desvalorização que vem sendo feita a práticas desta natureza”, atira.
E Paulo Calado, presidente da Comissão Política da Secção de Setúbal do PSD, em declarações ao Público e ao DN, considerou que “por menos” Lina Lopes desistiu da corrida à presidência da Câmara pelo Chega.