Luís Martins Ferreira: “O seminário era bastante rigoroso, era um ambiente fechado em que o Mundo era visto como o pecado”

Luís Martins Ferreira: “O seminário era bastante rigoroso, era um ambiente fechado em que o Mundo era visto como o pecado”

Luís Martins Ferreira: “O seminário era bastante rigoroso, era um ambiente fechado em que o Mundo era visto como o pecado”

Dividiu a vida entre o operariado e a Igreja, em que pelo meio a emigração também marcou o seu percurso. No seu livro, baseado em memórias, fala da realidade dos padres-operários mas não só em Portugal

Luís Martins Ferreira nasceu em 1943 em São Martinho da Cortiça, em Arganil, e dez anos mais tarde entrou para o seminário. Em 1971 ingressou nos Filhos da Caridade, depois de ter voltado de França onde trabalhou e participou nas greves e manifestações do “Maio de 98”. Foi fresador e torneiro mecânico em empresas como a Standard e a Equimetal, e foi por esta altura que soube o que é “ter mais mês do que salário”.

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Reformou-se do trabalho operário em 2008 mas, durante todo este tempo, dividiu a sua vida entre o ofício na serralharia e o sacerdócio: tornou-se, portanto, padre-operário. Foi com as suas memórias que escreveu “O torno e o altar” onde dá a conhecer como é – ou como foi – a realidade de muitos devotos que dividem a vida entre a Igreja e o operariado.

Em entrevista a O SETUBALENSE explica que existiram três momentos da sua vida que mais o marcaram, e que o fizeram reflectir sobre escrever e publicar a história das realidades que viveu.

Quais foram as ideias que o levaram a escrever “O Torno e o Altar”?

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Cito muita gente para além da minha própria pessoa, porque é que eu digo isto, porque aproveitei o livro para explicar duas coisas que existiram em Portugal e que foram importantes: a primeira são os padres dedicados ao mundo operário.

Há 50 anos ser operário era trabalhar no duro, trabalhar nove horas por dia, normalmente com máquinas, ambientes ruidosos, ganhando miséria, e houve um conjunto de padres aqui na Diocese – e em Portugal – que assumiram a condição operária, ou seja, foram trabalhar. E eu relato muito no livro a vida nesse espaço porque fizemos um colectivo que se reunia regularmente e que comportava padres, religiosos e religiosas que optaram por ser operários. Esse colectivo chegou a ter 35 pessoas.

Mostra-se como um padre-operário, mas esta questão do operariado foi ou não por escolha?

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Na apresentação do livro expliquei que há três momentos da minha vida que são determinantes. O primeiro momento é que, quando cheguei ao fim do curso seminário, já era muito frequente os seminaristas fazerem experiências operárias em fábricas – sobretudo nas dioceses do Porto, Lisboa, Coimbra – e eu não estava muito virado para isso porque o meu pai tinha uma fábrica de serração e eu nas férias trabalhava na fábrica.

Mas passou um padre que falou numa perspectiva de viver o sacerdócio em pequenas comunidades e isso atraiu-me e eu acabei por ir fazer a experiência atrás dessa vida comunitária.

O segundo momento é um ano depois, porque quando se está a trabalhar com uma máquina num ambiente ruidoso o pensamento era sempre entre a oração, a meditação, o pensar e o reflectir, e eu vi com clareza que queria ser padre-operário. Não por razões de ordem ideológica. Tinham recomeçado nessa altura os padres operários em 1966…

Nesta altura já havia esse conceito e designação de padre-operário?

Os padres operários nascem na deportação de cerca de quatro mil padres franceses, italianos e belgas para as fábricas da Alemanha para substituir os trabalhadores franceses. Quando vieram, tendo feito a experiência operária, pelo menos três anos, quiseram continuar a ser operários, pediram ao arcebispo de Paris e ele aceitou. Essa primeira experiência durou até 1954, o Governo francês pressionou o Vaticano para acabar com a experiência e o Vaticano cedeu. Ela recomeçou depois do Conselho Vaticano II e acabou em 1965 e recomeçou em 1966.

Quando digo, a certa altura, que cheguei a participar em reuniões estas tinham cerca de 1400 ou 1500 padres-operários, portanto era um número considerável, eu ia para uma coisa que era já muito reconhecida em França.

E existiam padres-operários de todo o Mundo?

Havia gente de Portugal, Espanha, Suíça, Alemanha, Bélgica, Itália – bastantes também -, e da América do Sul. Depois também os países do Leste – por exemplo da Albânia. Não foi uma opção ideológica, foi opção de escolha de vida.

Falou nos três momentos que mais marcaram a sua vida mas queria recuar à época em que fez o seminário. Como é que isso o influenciou a tomar esta escolha?

Fui para o seminário com 10 anos, era uma criança, eu gostava do padre da minha terra, era simpático e eu queria ser como ele – qualquer criança tem o seu o seu sonho. Mas nunca me passou pela cabeça ser padre-operário.

O seminário era bastante rigoroso, era um ambiente fechado em que o Mundo era visto como o pecado. Fui educado muito nesse tipo de ambiente, mas surgiu o Conselho Vaticano II que foi convocado em 1969 pelo Papa João XXIII e depois terminou em 1975, virou isto de pernas para o ar. Começou a dizer- -se que afinal o Mundo não é mau e que é um lugar de evangelização, que temos é de bater o passo com a modernidade. Ou seja, com os Direitos Humanos que tinham sido declarados pelas Nações Unidas em 1948.

E bateu?

Sinceramente não sei. É engraçado que há um livro do Albérico Costa que estudou os ficheiros da PIDE e ficou espantado porque a PIDE-DGS, entre 1970 e 1974 quem os preocupava mais eram os padres e os católicos. Era um grande objecto de investigação.

O senhor era padre e pregava pela paz e, enquanto era operário, estava a produzir bombas. De que forma mexeu consigo?

Mexeu muito com a minha consciência. Hoje tenho uma visão do mundo marcada pela guerra. Nasci em plena II Guerra Mundial, em 1943, depois, quando era miúdo, a minha mãe comprou um rádio e falavam de uma guerra que era na Coreia. Depois em 1960 foi quando o meu irmão foi para a guerra – eu não fui porque os padres estavam isentos.

Tenho um pensamento que é um bocado heterodoxo. Não ponho as questões aos Estados Unidos, à Rússia, à China, para mim é fumaça. Ponho os interesses dos fabricantes e comerciantes de armas que fabricam armas para alimentar guerras e que estas existem para que armas sejam produzidas. E depois já existe todo o tipo de traficantes, incluindo drogas, de seres humanos, e de armas, que lavam o dinheiro do sistema financeiro, e o sistema financeiro serve para lavar todo este dinheiro sujo que está cheio de sangue.

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