A celebrar 50 anos de actividade a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Setúbal derrubou estigmas sociais e sob a liderança de José Salazar desafia a comunidade a questionar o que cabe na inclusão, igualdade e diferença
Recusou receber a Medalha de Honra da Cidade, atribuída este ano pela Câmara Municipal de Setúbal. José Salazar, assume a presidência da direcção da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Setúbal (APPACDM Setúbal) há 16 anos e afirma que o mérito “é de toda a instituição” e não apenas seu.
Na liderança da maior e mais antiga Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) da região dedicada a apoiar pessoas com deficiência e carências, desde há 50 anos, o professor assume que “ainda há muito por fazer por quem tem deficiência e a própria APPACDM poderia fazer muito mais, longe do seu pleno potencial, nem sempre a utilizar os recursos adequados, mas os possíveis”.
Em entrevista a O SETUBALENSE faz um roteiro pelas conquistas da inclusão no distrito, nas últimas décadas e fala sobre a expectativa de concretizar em breve o projecto do novo Centro Residencial Miguel Simas, dependente, entre outros aspectos, da conclusão do novo Plano Director Municipal.
Porque rejeitou a Medalha de Honra da Cidade?
É uma questão de princípio. Tudo aquilo que tenho feito na APPACDM é património da instituição, portanto se há algo que eu tenha feito e seja merecedor de reconhecimento então a APPACDM deve ser reconhecida como um todo e não eu.
Quem é a APPACDM hoje e quem são os seus utentes?
Começamos por ser uma delegação da APPACDM de Lisboa, criada em 1970. Depois, há 27 anos, ficámos autónomos. Sendo esta a instituição mais antiga do distrito, dedicada ao cuidado e apoio de quem tem deficiência e precisa de ajuda.
Há 30 anos atrás a APPACDM Setúbal era altamente estigmatizante. Estar ligado à instituição significava carregar o estigma da deficiência e entrar no isolamento. Hoje somos o oposto. A APPACDM chega a toda a comunidade, muito além da assistência a quem tem deficiência e precisa de ajuda, acompanhando mais de mil utentes.
Temos a creche, o apoio domiciliário, recebemos o Programa Escolhas [dedicado à inclusão social de jovens que vivem em contextos sociais e económicos vulneráveis]. E o exemplo do CAVI [Centro de Vida Independente] já em funcionamento e a acompanhar diariamente 40 utentes. Para além de seis Centros de Actividades Ocupacionais, o Centro de Atendimento, Acompanhamento e Reabilitação Social para pessoas com deficiência e incapacidade e da Quinta da Serralheira no seu todo.
Depois há outra vertente: a da saúde mental.
Esse apoio à saúde mental existe porque não há respostas especializadas ou porque é difícil separar deficiência e doença mental?
Em muitos casos uma área está ligada à outra. Mas o que acontece na região, e em todo o país, é que a saúde mental tem problemas graves de falta de apoios e estruturas.
A escassez de respostas leva as famílias a recorrerem a instituições que, não sendo direccionadas para essas áreas, tentam dar algumas respostas, como é o caso da APPACDM, em Setúbal. E nesta boa vontade, nem sempre se conseguem dar as melhores respostas. Atrevo-me mesmo a dizer que, muitas vezes, não damos a melhor resposta. Não temos os meios, nem o conhecimento adequado.
Esta falta de respostas está relacionada com um período de experimentalismo irresponsável.
Durante anos houve devaneios que cativaram vontades políticas e mentes pouco consistentes analisaram estas propostas. Apontaram-se caminhos alternativos que não se conseguiram concretizar, por falta de entendimento ou de conhecimentos. E criou-se um vazio que perdura. Um vazio terrível para muitas famílias.
É urgente investir. Pode ser feito através do Serviço Nacional de Saúde, do reforço das respostas já existentes ou aproveitando os recursos de instituições que actuam noutras áreas.
“É natural que a insatisfação seja grande porque estamos muito aquém do que a realidade exige”
As instituições que prestam apoio à deficiência devolvem ao utente, em serviços, o equivalente àquilo que recebem da Segurança Social em subsídios?
O Estado tem a obrigação de monitorizar o modo como a instituições aplicam aquilo que lhes é atribuído. No caso de instituições como a APPACDM, existem os acordos típicos em que a Segurança Social atribui um valor por cada utente a que é prestada assistência [cerca de 500 euros, quando o utente está em Centro de Actividades Ocupacionais, ou acima dos mil euros, em Lar Residencial] . Nos acordos atípicos são negociados valores.
Nos acordos típicos as instituições são representadas pela CNIS [Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade], que tem reafirmado, frequentemente, que os valores não são suficientes para suportar, sequer, o custo dos quadros técnicos e despesas de funcionamento.
O que está falhar neste modelo?
Há claramente um subfinanciamento e as contas deveriam ser feitas novamente para avaliar quanto custa o trabalho de cada profissional e quanto custa apoiar cada utente.
Depois podemos sempre procurar outras fontes de financiamento. Mas é preciso avaliar se os modelos não passariam parte da responsabilidade para as famílias, o que acentuaria dificuldades sociais.
E um modelo de geração de receitas próprias, associado à integração profissional, como é feito na APPACDM através das actividades de carpintaria e jardinagem, é possível?
Reflectimos permanentemente sobre essa questão. Como é que podemos depender cada vez menos das comparticipações do Estado e ter receitas próprias?
A APPACDM tem conseguido, lentamente, com pequenos passos e de forma sustentada, aumentar a percentagem do autofinancimaneto. É um caminho possível, mas, não é fácil estruturas que sempre se mantiveram desta forma, alterarem totalmente o modo de funcionamento.
Há 50 anos como era a resposta às necessidades sociais e de saúde de quem tinha deficiência?
Há 50 anos estávamos num modelo completamente assistencialista. Hoje, atrevo-me a dizer que o nosso modelo de inclusão está ao nível do que há de melhor no país. Mas, conscientes de que já fizemos muito, sabemos que ainda há muito por fazer. E é natural que o nível de insatisfação por aquilo que ainda queremos fazer seja muito grande. Estamos muito aquém daquilo que a realidade exige.
“Há claramente um subfinanciamento das instituições e as contas deveriam ser feitas novamente para avaliar quanto custa o trabalho de cada profissional e quanto custa apoiar cada utente”
Quando diz que ainda estamos muito aquém daquilo que gostaríamos de fazer, a que áreas se refere?
Em todas as linhas mas, especialmente, nas respostas residenciais. Estamos a colocar jovens adultos em centros a 200 ou 300 quilómetros de distância das suas residências anteriores. Longe das suas raízes e famílias. Pergunto: o que é cada um de nós pensa sobre isto?
Impomos soluções a cidadãos com deficiência partindo do princípio de que isto lhes é indiferente. Não é. E não temos o direito de impor esta descontextualização. A solução é só uma: criar estruturas de acolhimento em todos os territórios.
Em que fase está o projecto do novo Centro Residencial Miguel Simas?
Esse projecto tem sofrido muitas vicissitudes com o enquadramento legal e as diferentes perspectivas de financiamento que ora existem, ora deixam de existir. Por isso, está mais demorado do que desejávamos. O Governo já anunciou o PARES III [nova fase do Programa de Alargamento de Equipamentos Sociais] e temos esperança nesta nova oportunidade de financiamento. Se tal vier a acontecer teremos um novo lar residencial com capacidade para 30 utentes, mais 15 a 16 vagas num novo Centro de Actividades Ocupacionais [CAO], que virá substituir as actuais instalações do CAO1. Para isso também é necessário que todas as entidades envolvidas entreguem o seu contributo atempadamente.
Refere-se à Câmara de Setúbal?
Há cerca de 15 anos a Câmara Municipal concedeu à APPACDM o espaço para construir este equipamento, na zona do Monte Belo Norte. Desde então temos encontrado, sempre, da parte do município, disponibilidade para agilizar o licenciamento do projecto. Mas, a fase de reavaliação e concepção do novo Plano Director Municipal [PDM] está a deixar-nos receosos de que este licenciamento venha a enfrentar dificuldades.
De que modo o novo PDM pode comprometer o projecto?
Com o novo Plano Director Municipal ainda em consulta pública a autarquia não pode emitir parecer sobre o licenciamento do projecto de construção. No entanto, a APPACDM já está ser chamada para adaptar o projecto às novas directrizes do PARES e podemos necessitar do licenciamento antes do PDM estar concluído, para dar consistência e maior exequibilidade ao projecto que vamos apresentar. Por isso, o município pode vir a ter de encontrar outras soluções rapidamente.
Qual será o orçamento para este investimento?
São 2,5 milhões de euros. No âmbito do PARES ainda não sabemos qual será a percentagem de financiamento do Governo, mas, a partir de outros exemplos, estimamos que o financiamento será na ordem dos 60%. A instituição terá de assumir o restante valor.
O que considera que a APPACDM poderia ter feito em 50 anos e, por alguma razão, ainda não foi possível concretizar?
O Centro Miguel Simas já podia estar construído. A cidade necessitava que assim fosse e já teríamos evitado muitos problemas sociais se assim tivesse acontecido. E isso não deixa de ser doloroso para mim. Não termos sido capazes de concretizar esse projecto e criar mais respostas sociais. E gostava que também tivéssemos sido mais criativos e inovadores em algumas áreas.
Perfil Dedicação ao ensino e inclusão plena
Com formação base no ensino do 1º ciclo, José Salazar foi destacada para leccionar na APPACDM Setúbal há 24 anos, nas instalações da Quinta da Serralheira. Desde então abraçou as causas da instituição, na qual assumiu a presidência há 16 anos.
Trabalha em prol da inclusão plena e respeito pelas diferenças e individualidade de cada cidadão. E afirma que se algo foi feito para apoiar que tem deficiência e precisa de acompanhamento diário foi “feito por todos, dentro da APPACDM, com o trabalho e dedicação e todos e não apenas pela vontade de um homem”.