Dedicado à investigação da história local, em particular a de Setúbal e a do século XX, Diogo Ferreira é um dos jovens setubalenses mais promissores. Olha para a História como um edifício em permanente reconstrução e defende o conhecimento informado sobre o passado como base para decisões acertadas sobre o futuro, numa altura de grandes convulsões. Eis o seu percurso e algumas notas de reflexão, que podem servir a todos
Diogo Ferreira nasceu em Setúbal a 28 de Julho de 1991. Licenciado em História (2013) e mestre em História Contemporânea (2015) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, é um dos jovens setubalenses mais promissores quando o assunto é a história local. Neste momento, além de colaborar com o recém-criado Gabinete de Promoção e Divulgação do Património Histórico e Cultural, na autarquia setubalense, está a desenvolver a sua tese de doutoramento intitulada “Setúbal no Entre Guerras (1919-1945): Um itinerário de história local”, com a qual dá continuidade à sua especialização.
Desengane-se quem pensa que Diogo é um “rato de biblioteca”. Igual a tantos outros jovens da sua idade, mantém uma relação há 13 anos, joga futebol com os amigos e gosta de se divertir com eles. Nascido e criado em Setúbal, é com propriedade que fala das suas raízes profundamente sadinas. “O meu pai veio de Grândola para Setúbal com 12 anos, no contexto da segunda industrialização de Setúbal, nos anos 1960/70, mas do lado da minha mãe foi diferente. A minha avó materna foi operária latoeira numa fábrica de latas de conservas de peixe”, conta, revelando que já o seu trisavô morara no bairro de Troino, no século XIX.
Segundo conta, teve uma infância feliz. Até ao quarto ano do ensino básico, feito na escola dos Pinheirinhos, brincou muito no exterior, morava então na Rua Camilo Castelo Branco. “Brincava às escondidas e jogava muito futebol – a minha segunda paixão – com amigos e vizinhos de diferentes níveis sociais, cores e etnias”. Seguiram-se os videojogos, depois a mudança para a Escola Básica de Aranguez e o ensino secundário na Escola Secundária D. Manuel Martins. “Os meus pais sempre me deram liberdade, talvez por eu ser muito bom menino e ter sempre boas notas. Nunca fiz avarias”, relata, com sentido de humor.
História tornara-se, desde cedo, a sua disciplina favorita – de tal forma que num dos aniversários pediu como presente que o levassem a conhecer o Castelo de Palmela, que fitava da janela, e o irmão mais velho lá o levou num Renault 5. “De Educação Física também sempre gostei. Era bom a todas as disciplinas (menos a matemática)”. No 10.º ano Diogo escolheu o curso de Línguas e Humanidades, “não para fugir à Matemática”, assegura, mas “por gostar”. Havia, porém, quem o aconselhasse a seguir Ciências e Tecnologias “porque tinha cinco valores a tudo, menos a EVT e a Matemática”. Os pais sempre se mantiveram ao lado das suas escolhas pessoais.
“O secundário, na fase da adolescência, não foi tão fácil. Comecei a tocar guitarra e a vestir camisolas dos Nirvana e dos Foo Fighters, tive uma banda. Estava a descobrir-me e foi quando comecei a namorar. Apesar desta tendência para o rock e para sair à noite, a escola sempre foi a prioridade”. E em 2010, quando se assinalou o centenário da instauração da República, Diogo teve 19,5 valores no exame de História. A escolha do curso superior afigurou-se como “o momento mais difícil” do seu percurso escolar. O país atravessava a crise económica (de 2008/2009) e História era apontado como um dos cursos com pior expectativa de emprego.
“Houve quem me dissesse para ir para Direito, apesar de os testes psicotécnicos que fiz na altura, por minha iniciativa, darem um pico em História. Os meus pais sempre me disseram para estudar o que eu queria, mas optei por Direito, por ter várias saídas profissionais, e entrei na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde estive três semanas. A minha mãe comprou-me os livros, eu comecei a lê-los, mas aquilo não me dizia nada. Não gostei do ambiente, das pessoas nem do formalismo do curso”, nota.
Diogo Ferreira recorda a seguinte história. “Houve um dia em que cheguei cinco minutos atrasado a uma aula de Direito Romano. Sentei-me, comecei a tirar apontamentos e senti uma epifania, uma espécie de revelação que me atingiu e pensei ‘O que é que estás aqui a fazer? Isto não és tu’. E fui-me embora”. Aproveitando a terceira fase de ingresso, Diogo entrou em História na FCSH, onde a namorada estudava. Proactivo, ofereceu-se para um primeiro estágio não remunerado no Museu do Trabalho, durante o Verão, onde teve “o primeiro contacto com fontes documentais sobre Setúbal” e percebeu que havia muito a contar.
No terceiro ano do curso fez o seu primeiro trabalho “a sério” sobre a História de Setúbal, contactando com os livros do professor Albérico Afonso Costa, que não hesita em apontar como o “mestre” nesta área. Durante o mestrado em História Contemporânea, focou-se ainda mais na consulta de arquivos e imprensa coeva sobre Setúbal para escrever a dissertação sobre os impactos da Primeira Guerra Mundial na cidade, que viria a publicar em livro. “Na faculdade ensinam-nos como é que se faz, mas é o contacto directo e exaustivo que nos dá experiência”, conta. “História de Portugal – O que todos precisamos de saber” (em co-autoria) foi o seu primeiro livro publicado.
Seguir-se-iam outros seis, dois dos quais publicados a solo – sendo o mais recente “Breve História da Freguesia de São Sebastião – Setúbal”. No seu percurso conta também com vários artigos na imprensa, em revistas locais e académicas e com a participação em quase uma centena de conferências e palestras, assim como a colaboração em projectos universitários ligados à investigação científica. “Tenho a sensação de estar a cumprir uma missão que está dentro de mim, mas não consigo explicar por palavras. Sinto um ímpeto permanente e não me canso de querer saber mais, de contribuir com ideias para novos livros em torno da história da cidade”, confessa.
“Quando contactei com o arquivo da Liga dos Combatentes percebi que a história da cidade tem muita coisa que se sabe, mas que há ainda mais que está por ser estudada. Isto é de tal maneira fascinante que, quanto mais penso que sei, mais percebo que não sei e que há muito por fazer. É bom dizer que eu não vim descobrir a pólvora. Os professores Albérico Afonso, Maria Conceição Quintas e outros historiadores e investigadores foram quem me fez apaixonar por isto. A partir deles percebi que há muito trabalho por fazer, e é por isso que sinto que tenho obrigação moral de, enquanto profissional, dar continuidade ao trabalho feito”, diz.
Diogo Ferreira chama a si, ainda, uma missão como historiador local: “Dar voz e rosto às figuras anónimas, muitas vezes marginalizadas”, considera. “A história do país versa quase sempre sobre as grandes figuras e a história local tem a componente de trazer à luz histórias que estão perdidas no limbo colectivo”. Para o jovem, “tornar a História mais concreta, próxima e palpável pode ajudar a combater os malefícios da globalização, que tenta uniformizar conceitos generalistas, como o da aldeia global”. É preciso fomentar o sentimento de pertença ao lugar, para ajudar a reflectir sobre o futuro da cidade e do concelho, defende.
“Estamos a passar uma fase difícil em relação à informação. Nunca houve tanto acesso a informação, mas tão falsa. Até jornalistas cometem erros com interesses políticos, e isso é perigoso. Uma mentira repetida até à exaustão torna-se verdade e o historiador tem o papel decisivo de trazer à tona a sua consciência, metodologia de crítica e análise de fontes e o olhar do passado para o presente”, reflecte. Pela forma apaixonada como fala da profissão, Diogo Ferreira transparece satisfação plena com as suas escolhas, e admite, com o optimismo humilde que o caracteriza, que pode ser olhado como uma referência por futuros jovens historiadores.
Diogo Ferreira à queima-roupa
Idade: 31 anos
Naturalidade: Setúbal
Residência: Setúbal
Área: História
Sente uma obrigação moral de dar voz às figuras e luz aos factos desconhecidos. Trata a história da cidade com espírito de missão.