Investigador defende o investimento em acessibilidades transversais e o reforço de todos os transportes públicos, incluindo os fluviais no Sado
Enquanto director executivo do Polis de Setúbal, entre 2003 e 2007, foi sob a sua direcção que arrancaram as principais obras realizadas na cidade e duas delas, o Largo José Afonso e o Parque Urbano de Albarquel, foram mesmo terminadas quando ainda estava em funções. Em entrevista a O SETUBALENSE, Demétrio Alves faz um ponto de situação sobre a mobilidade e os transportes na Península de Setúbal.
Que retrato faz da mobilidade e transportes na Península de Setúbal?
Sendo a mobilidade a capacidade de deslocação em função das necessidades individuais ou colectivas, há que a ver, do ponto de vista sociopolítico, como um direito constitucional. Não haverá boa mobilidade sem infra-estruturas de acessibilidade e meios integrados num sistema de transportes adequado em quantidade, qualidade e preço. O diagnóstico está feito, mas as carências têm persistido. Com o Inquérito à Mobilidade, realizado entre 2016 e 2017 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) nas áreas metropolitanas, uma conclusão é clara: 60% das viagens continuam a ser feitas em transporte individual e apenas 16% em transporte público. A grande crise económico-financeira de 2011 e 2015 veio agravar a situação da mobilidade. Em 2015, um evento, desvalorizado e obstaculizado por alguns, acabaria por se verificar fundamental: a assumpção pela Área Metropolitana de Lisboa (AML) das atribuições e competências estabelecidas no Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte de Passageiros. Foi um enorme desafio que, desta vez, não ficou apenas pela conversa. Quando, em Abril de 2019, entrou em funcionamento a grande alteração tarifária, com uma enorme redução no preço de 550 mil passes, tratava-se da finalização do trabalho iniciado em 2015. Passaram a estar disponíveis 19 novos passes: um passe navegante metropolitano e 18 passes navegante municipais. Embora fundamentais, o novo sistema de títulos de transportes e a nova bilhética não conseguem, por si só, assegurar a melhoria da mobilidade democrática. As acessibilidades e o sistema de transportes públicos colectivos foram votados à degradação durante décadas. Carecem de grande volume de investimento.
Quais são as grandes carências?
A Península de Setúbal já possui um conjunto de acessibilidades que lhe poderiam proporcionar boas interligações regionais e metropolitanas, com a Grande Lisboa, através dos corredores rodoferroviário e fluvial, e com o Alentejo/Algarve e Espanha. Mas, para que estas infra-estruturas de base sejam potenciadas, é necessário fazer investimentos em acessibilidades transversais e de ligação dos tecidos urbanos aos interfaces intermodais, para além do reforço mais rápido na oferta de transportes públicos, ferroviários, rodoviários e fluviais, também no Sado. A conectividade interna peninsular entre áreas de estruturação socioeconómica é insuficiente, o que é crítico para a coesão neste território. Não será possível adiar por muito mais tempo a decisão quanto à Terceira Travessia do Tejo, com ou sem nova infra-estrutura aeroportuária decidida, e também me parece óbvio que o novo aeroporto de Lisboa deveria começar a ser concretizado, por fases, no Campo de Tiro de Alcochete/Benavente, tendo em conta as consequências estruturais que emergirão do surto pandémico, no turismo, por exemplo, e as preocupações ambientais e climáticas. Verifico ainda a necessidade de um novo terminal de contentores na Margem Sul, articulado com a Plataforma Logística do Poceirão, se ainda for possível ressuscitá-la, e dever-se-á reforçar qualitativa e quantitativamente a rede do Metro do Sul do Tejo, mas sem lá se enterrar dezenas de milhões de euros. Fundamentais também são os Planos de Mobilidade de “cidade” para proceder a acertos de pormenor, como o realizado em Setúbal.
De que se faz o futuro próximo?
Só no final de 2021 novos autocarros começarão a circular em mais linhas e com horários mais confortáveis nos dois subsistemas da Península de Setúbal: um nos concelhos de Almada, Seixal e Sesimbra, e ligações intermunicipais ao Barreiro e Lisboa, a cargo dos TST; e outro nos municípios de Alcochete, Moita, Montijo, Palmela e Setúbal, e as respectivas ligações intermunicipais ao Barreiro e Lisboa, atribuído ao agrupamento NCH/National Express, Transvia e à Empresa de Transporte Luísa Todi. No primeiro caso haverá 116 linhas – 43 novas – e, no segundo, serão 111 linhas – 21 novas. A frota da Transtejo/Soflusa é composta por 28 navios que, em geral, têm vida bastante adiantada. Mais de 16 milhões de pessoas atravessam o Tejo todos os anos: no trajecto Terreiro do Paço-Barreiro, 7,7 milhões de passageiros por ano, e no trajecto Cais do Sodré-Cacilhas, 5,8 milhões. Estão previstos 10 novos navios para as ligações fluviais entre as duas margens do Tejo, quatro entrarão em funcionamento até final de 2022 e os últimos dois só em 2024, num investimento de cerca de 52 milhões de euros. Para se colmatarem as significativas lacunas existentes na Península de Setúbal seria necessário, contudo, um maior investimento público que continua a ter grandes obstáculos. No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), entregue no final de Abril à Comissão Europeia, nada consta quanto ao sistema de transportes públicos que servem a Península de Setúbal. Quanto a infra-estruturas de acessibilidade, entre as limitadas previsões retidas no PRR, apenas está previsto um investimento na EN10-4 Setúbal-Mitrena. É pouquíssimo para a satisfação das necessidades com vista ao desenvolvimento e aos ganhos na coesão socioeconómica e territorial da península no contexto da AML.
E por onde passa a solução?
A solução não será continuar a depender da pendularidade baseada nos veículos individuais, mesmo que eles passem a ser movidos a electricidade. Isso seria um erro colossal e, até um logro que, a (des)propósito do combate às alterações climáticas, apenas serve negócios empresariais. Os designados modos suaves – ciclável, pedonal, partilha – embora muito fotogénicos, serão pouco mais que simbólicos nesta região concreta. Seria muito mais interessante apostar em circuitos baseados em transportes públicos rodoviários a gás natural veicular ou eléctricos, que facilitassem as deslocações diárias dos utentes para e das estações ferroviárias, bem como em mais parqueamento gratuito junto dos interfaces.
Demétrio Alves O antigo autarca que se especializou em transportes
Doutor em Planeamento e Ordenamento do Território na FCSH/UNL, é Engenheiro Químico (Ramo Tecnológico), pelo IST, pós-graduado em Política, Economia e Planeamento da Energia, no ISEG, e pós-graduado em Direito do Ordenamento do Território, do Urbanismo e Ambiente, na Faculdade de Direito da UL.
Foi primeiro-secretário metropolitano da AML de 2014 a 2017, director Executivo do Polis de Setúbal entre Novembro de 2003 e Maio de 2007 e presidente da Câmara Municipal de Loures entre 1990 e 1999.
Neste mesmo ano, foi agraciado pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.