Isabel Cristina Fernandes: “Palmela foi a segunda sede da Ordem de Santiago”

Isabel Cristina Fernandes: “Palmela foi a segunda sede da Ordem de Santiago”

Isabel Cristina Fernandes: “Palmela foi a segunda sede da Ordem de Santiago”

O Castelo de Palmela “foi um polo estruturante da preparação da batalha de Alcácer”. E Troia foi “principal complexo industrial” dos romanos

Historiadora e arqueóloga, além de ter sido professora na Secundária de Alcochete até há dois anos, Isabel Cristina Fernandes é uma das maiores referências nacionais no estudo das Ordens Militares antigas, o que lhe valeu ser condecorada, no passado dia 3, pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com o título honorífico de Dama da Ordem Militar de Santiago de Espada.
Em entrevista a O SETUBALENSE e à Rádio Popular FM, a também coordenadora científica do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago no município de Palmela – e especialista em Arqueologia Romana, Islâmica e Cristã Medieval – realça o significado do título honorífico e debruça-se sobre os mais de 30 anos que já leva de investigação nestas matérias.

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Que significado tem para si esta distinção?
Este título surpreendeu-me muito e, por ser a Ordem de Santiago, tem um significado muito especial, uma vez que tem sido em torno dessa Ordem que mais tenho trabalhado e à qual tenho dedicado mais a vertente científica e de promoção da própria Ordem enquanto elemento de estudo. É um título honorífico muito importante, que premeia valores no âmbito das ciências, das artes e das letras a nível nacional. Neste caso, obviamente que é a área científica que está em jogo, embora as letras também estejam sempre relacionadas, porque quando publicamos um estudo, obviamente as duas vertentes estão ligadas. Sinto-me orgulhosa, não só por mim, mas por todo o trabalho desenvolvido também em equipa, em Palmela.

Como e quando lhe surgiu essa paixão pela História, pela Arqueologia, pelas Ordens Militares?
Pela História há muito tempo, uma vez que cursei História. Nuns primeiros momentos procurei a especialização mais na vertente arqueológica. Enveredei na primeira fase da minha carreira por investigação arqueológica, muito direcionada para o período romano, mas a partir do momento em que comecei a trabalhar no distrito de Setúbal, mais especificamente no concelho de Palmela, em termos arqueológicos, centrei-me primeiro no romano, mas depois quase exclusivamente, a partir dos anos de 1990, dediquei-me à arqueologia do período medieval islâmico e período medieval cristão.

Estamos a falar de um período…
Desde o século VIII até ao século XIV e também alguns séculos posteriores. O contacto com Palmela, inevitavelmente, levou-me às Ordens Militares. Palmela, Ordem de Santiago, o próprio distrito, Ordem de Santiago. E, por essa via, o contacto foi inevitável com a Ordem de Santiago e o interesse que se despertou foi sobretudo aí. E porque, nas escavações que dirigi no Castelo de Palmela, tive a felicidade de encontrar vestígios do período medieval (finais do século XII e inícios do XIII), daquilo que hoje temos reconhecido como verdade que é Palmela ter sido a segunda sede da Ordem de Santiago, nesse período. Coisa que até aí não era entendida assim.
Portanto, quando se fala de Palmela como uma sede da Ordem de Santiago a partir do século XV, não é a verdade total. Já tinha havido uma anterior. Escavámos uma necrópole dos primeiros freires da Ordem de Santiago que ali se sepultaram, no Castelo de Palmela. E sobre um dos esqueletos estava ainda uma insígnia, uma medalha da própria Ordem. Uma insígnia que é única, para a qual não se encontrou ainda paralelo.

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Em termos globais?
Em termos globais dos locais onde existiu a Ordem de Santiago, portanto, Portugal e Espanha, que nos indica que realmente, num período que terá sido relativamente curto, Palmela terá sido uma das primeiras sedes da Ordem.

A segunda?
A segunda porque, hoje em dia, admite-se que a primeira terá sido em Alcácer do Sal. Durante também um período curto. Sempre muito ligadas Alcácer e Palmela por via da Ordem de Santiago, a partir daí.

Apesar da distância.
Sim. Em termos de localização estratégica, são dois polos muito importantes, porque temos de ver que Setúbal, na altura, não tinha esse significado. Estamos a falar do século XII, XIII. A partir do XIII, Setúbal descola, digamos assim, em detrimento de Alcácer, também de Palmela, etc. O porto [de Setúbal] ganhou expressão, obviamente, comercial e em tempo de paz isso foi muito significativo. Portanto, estou a falar desta sede da Ordem de Santiago num período curto, que podemos localizar sensivelmente entre 1194 e 1217, ou seja, quando a Ordem e outras hostes conseguiram recuperar o Castelo de Palmela das mãos dos últimos muçulmanos, antes de se conquistar Alcácer, da grande batalha de Alcácer do Sal, que ocorreu em 1217. Na verdade, o Castelo de Palmela, nesse período, foi um polo estruturante da preparação dessa batalha decisiva, porque a partir do momento em que os cristãos ocuparam Alcácer tornou-se muito mais fácil todo o avanço para Sul…

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Até à conquista dos Algarves.
Até à conquista dos Algarves. E não é por acaso que depois a sede da Ordem passa de Palmela para Alcácer. A Ordem de Santiago ficou a dominar no final desse processo de conquistas a maior parte do Sul, precisamente porque ela foi sempre acompanhando o ritmo de conquistas e avançando a sua sede conforme a conquista ia avançando. Portanto, passou para Alcácer e depois para Mértola. E, depois, curiosamente, fez o percurso inverso. Em tempo já de paz voltou para Alcácer e, depois, definitivamente, para Palmela, em 1482.

Entretanto já com Setúbal com outra preponderância…
… Exatamente. Palmela, em termos de impacto económico, ficou muito menos importante do que Setúbal. No entanto, o seu castelo continuava e continua com uma posição [privilegiada], no fundo é o ponto mais alto da península, é a fortaleza que está no ponto mais cimeiro, com uma visibilidade impressionante à sua volta.

Como recomendam as boas estratégias militares.
Exatamente, reconhecidas até ao século XX, até quando estiveram lá instalados os militares.

Gosta mais de ser historiadora ou arqueóloga?
É difícil. Costumo dizer que me divido sempre por três vertentes: historiadora, arqueóloga e docente. Todas elas muito absorventes. As de historiadora e arqueóloga estão muito ligadas. A arqueologia em si deixou há muito de ser vista como uma mera, como antigamente se dizia, ciência auxiliar da História. No fundo é hoje uma vertente indispensável para se fazer História. E sempre defendi, e tento praticar um pouco isso, que deveriam constantemente trabalhar em conjunto, porque uma recebe da outra.
É fantástico desenterrar elementos do passado, materialidades do passado, e conseguir através delas conhecer muito, sobretudo do quotidiano das pessoas, porque aquilo que os documentos escritos normalmente não contam é precisamente o quotidiano das gentes, porque vão, obviamente, centrar-se sobretudo naquilo que interessa aos poderes, seja o rei, seja a nobreza. O quotidiano dos povos, na verdade, raramente é descrito, e a arqueologia preenche esse espaço.

Em Alcochete, em termos de ocupação romana, Porto dos Cacos é muito importante.
Muito, em termos de escavação de olarias de produção de ânforas. Ânforas que alimentavam, na sua maior parte, a indústria de salga de peixe e de produção de “garum”, uma pasta tipo patê, do período dos romanos, que se produzia em grandes quantidades em Troia. No fundo, Troia foi um complexo industrial da maior importância, a nível do Império Romano, porque os romanos de elite já chegavam ao ponto de escolher as marcas e os sabores dessa pasta de peixe, que havia nas várias partes do Império.

Já tínhamos merchandising nessa altura?
Completamente. As próprias ânforas vinham marcadas, não todas, mas uma boa parte delas, não só com a marca do fabricante, mas muitas vezes também com a marca, digamos, do produto. Havia produção aqui na região, em vários sítios, mas o principal complexo industrial de grande dimensão, ainda hoje conhecido como tal, era Troia. Embora se encontrassem tanques de salga, por exemplo, em Cacilhas, em Lisboa, também em Setúbal. Uma das escavações que dirigi em Palmela, a primeira, foi precisamente de uma olaria, na herdade do Zambujal, Marateca, certamente também para abastecer Troia.

N.d.R.: Esta entrevista pode ser ouvida na íntegra no canal YouTube da Popular FM, no podcast Entrevista à Sexta

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