O antigo profissional da unidade hospitalar montijense diz que as chefias e alguns médicos no Barreiro desconsideraram sempre o Montijo. E põe o dedo na ferida
João Veiga, antigo profissional do hospital montijense e membro atual da Comissão de Utentes da Saúde do Montijo, debruça-se sobre o fecho do serviço de medicina de retaguarda e a indefinição em torno do serviço de urgência básica. E, em entrevista a O SETUBALENSE e à Rádio Popular FM, revela o histórico entre a unidade do Barreiro e a do Montijo. “A partir da constituição do Centro Hospitalar foram esvaziando o Montijo”, afirma.
A concentração da urgência de obstetrícia em Almada pode resultar ou enferma de um problema que é o da proximidade, que afeta o acesso de pessoas de grande parte do distrito a esse serviço?
Na nossa opinião, a centralização é sempre um problema maior, porque concentra mais pessoas e há mais dificuldades, tanto na deslocação, como nos meios que são precisos, porque as pessoas têm de recorrer mais às ambulâncias, a carros, têm as crianças pelo caminho e às vezes em sítios muito desagradáveis. E, portanto, tudo isto é muito mau.
O que representa o serviço de medicina de retaguarda no Hospital do Montijo ir deixar de estar nas mãos da Unidade Local de Saúde do Arco Ribeirinho (ULSAR) para passar para uma entidade externa?
Representa a desresponsabilização da ULSAR. Nós não reconhecemos legitimidade ao Conselho de Administração da ULSAR para fazer essa negociação. Nem achamos que sejam confiáveis… Desde logo, porque não é o conselho de administração que define as políticas de saúde, é o Ministério da Saúde. E aquilo que muitos dizem, que a sra. ministra é incompetente, depende do ponto de vista. É que se é para destruir o SNS, que é o objetivo do Governo, ela está a ser competente. Está a cumprir com o objetivo.
… Mas em que é que fica a perder a comunidade, o Hospital do Montijo, com a passagem deste serviço para uma entidade externa, se propõem a duplicação do número de camas?
Acho que não fica a perder nem a ganhar. Porque, o Montijo só ganha se voltar a ter um serviço de medicina, um serviço de cirurgia e aquilo que sempre se pensou para o Montijo: ter um serviço de ortopedia. Até porque, estamos perto de uma ponte, a Vasco da Gama, onde há inúmeros acidentes. Precisávamos aqui de um serviço de ortopedia e de um serviço de pediatria. Eram quatro valências fundamentais. Hoje tem algumas especialidades na cirurgia de ambulatório, a que chamamos de pequena cirurgia, em que a pessoa é internada e sai no próprio dia e que funciona das 8 da manhã às 8 da noite. Depois, qualquer pessoa que aceda à urgência básica, porque se cortou ou porque teve uma queda e precisa de levar quatro ou cinco pontos, tem de se dirigir ao Barreiro.
A Urgência Básica no Montijo tem estado a fechar às 19 horas aos domingos e, aleatoriamente, a essa hora de semana. No hospital há quem diga que a ULSAR pediu à ministra o encerramento deste serviço sempre às 20 horas. Mas a ULSAR em reunião com o município refutou isso. O que sabe a Comissão de Utentes?
Na Comissão de Utentes somos como São Tomé, é “ver para crer”. Porque, a história recente desta unidade hospitalar diz-nos que os sucessivos conselhos de administração do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo nunca cumpriram o protocolo assinado entre a Câmara Municipal do Montijo e a [então] Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Por isso é que digo que não são confiáveis.
Têm dificuldade em tomar como boa a informação transmitida pela administração da ULSAR à Câmara, de que o serviço é para ser reforçado e continuar a funcionar 24 horas por dia?
Até ver provas em concreto, sim, temos dificuldade.
Não é de hoje que se tenta o fecho da Urgência Básica no Hospital do Montijo…
Fui lá profissional muitos anos. Desde muito cedo toda a gente dizia que ia fechar. Durante muito tempo o Montijo teve pujança. Porquê? Tinha vontades, tinha gente interessada, tinha gente que queria um serviço de medicina melhor…
… E foi isso que se foi perdendo?
Foi-se perdendo a partir do momento em que foi criado o Centro Hospitalar. Montijo foi sempre o parente pobre, no Barreiro nunca se gostou do Hospital do Montijo. Não estou a falar da população do Barreiro, estou a falar de direções, de chefias, de alguns médicos. Chamavam os colegas do Montijo de incompetentes, [diziam] “os gajos querem aquilo aberto para quê?” Assim que conseguiram a criação do Centro Hospitalar, a primeira coisa que fizeram foi ir buscar todos os médicos, os tais que eles diziam que eram incompetentes, para lá [Barreiro]. E o Montijo ficou sem médicos.
Mas não levaram só isso.
Não, levaram muito mais. Levaram sanitas, lavatórios, tudo o que estava num serviço, nomeadamente no serviço de cirurgia, que fechou. Levaram tudo o que de melhor ali havia. Inclusivamente as camas articuladas, que no Barreiro não tinham daquelas, mas que o Montijo tinha. Foram compradas, coisa curiosa, com o dinheiro que na altura a administração do Hospital do Montijo recebia do aluguer de espaços para as filmagens de novelas. E todas essas macas e camas, que eram todas sofisticadas, foram para o Barreiro. Até armários, tudo isso eles levaram. Puseram cá velho. E a partir daí foram esvaziando o hospital.
Tal como está, pode a unidade do Montijo ser considerada como hospital e, ainda que funcione nos moldes em que opera, é ou não extremamente necessário que continue?
É necessário que continue por uma razão muito simples: uma pessoa pode ter um enfarte à 1 da manhã, às 2 da manhã. Os enfartes não escolhem hora. Os AVC não escolhem hora. Estamos num concelho que tem Canha ou Pegões a 40 quilómetros e daqui ao Barreiro nós sabemos que nem sempre há ambulâncias, portanto, quando há uma doença crítica que põe em causa a vida da pessoa, não se pode estar nestas circunstâncias, é a lei que determina 40 quilómetros.
O que faz sentido é melhorar e construir desde já um novo hospital que possa servir também o [futuro] aeroporto.
Como define, hoje em dia, o Hospital do Montijo?
Não se define. Só se define que não é um hospital. Para ser um hospital tem de ter, pelo menos, três, quatro serviços. Estou a falar de serviços de internamento, nomeadamente medicina interna, cirurgia geral, cardiologia ou ortopedia. E pediatria. Se tiver quatro já é bom. Nós nunca tivemos mais do que dois. Perante isto, o que é hoje o Hospital do Montijo? É hospital nos letreiros, porque não é de facto um hospital. É uma extensão do Barreiro, que faz aquilo que o Barreiro não quer fazer.
Acredita que vai finalmente chegar ao Montijo uma ambulância SIV, prevista no protocolo de criação do Centro Hospitalar, como garantiu a ULSAR à Câmara?
Pessoalmente, não acredito. Como não acredito, porque tive conhecimento, não confirmei ainda, que foi o próprio Conselho de Administração da ULSAR que fez um pedido à ministra para encerrar a urgência básica a partir das 8 da noite.
E essa informação veio de onde?
Não vou revelar, porque não quero pôr em causa a pessoa. Mas, veio de dentro da ULSAR.
N.d.R.: Esta entrevista pode ser ouvida na íntegra no canal YouTube da Popular FM (em https://www.youtube.com/watch?v=QWKDCXqp6MU).