Caso do comandante que chicoteou suspeitos de furtarem carros e máquinas de tabaco em Santiago do Cacém e Vila Nova de Santo André. Oficial estava pronunciado por um crime de tortura mas foi condenado por quatro
O Tribunal da Relação de Évora anulou a condenação a quatro anos e meio de prisão efectiva por crimes de tortura aplicada pelo Tribunal de Setúbal ao ex-comandante da GNR de Santiago do Cacém e ordenou que fosse reaberta a audiência de julgamento. Em causa esteve um alegado lapso na decisão instrutória.
Carlos Botas foi acusado pelo Ministério Público (MP) de quatro crimes de tortura aos quatro suspeitos, mas após abertura de instrução foi pronunciado por apenas um. O Tribunal de Setúbal condenou mais tarde o ex-comandante da GNR de Santiago do Cacém pelos quatro crimes e os juízes desembargadores de Évora anularam agora a decisão e ordenaram que fosse realizado novo acórdão.
O MP alegou, em fase de recurso, que houve um lapso no despacho de pronúncia que não devia ser tido em conta, “já que existem quatro ofendidos, pelo que se tratam de quatro crimes de tortura e não de um como erradamente ali se refere”, mas o Tribunal da Relação não lhe deu razão. Os juízes consideraram não estar perante uma situação de lapso de escrita, mas uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia, alteração que não foi comunicada ao arguido.
A audiência será reaberta agora para que esta alteração seja comunicada ao oficial da GNR e então se possa defender.
Os crimes remetem-se à madrugada de 22 de junho de 2011 na Comporta. Os quatro suspeitos, setubalenses entre os 21 e 28 anos, tinham furtado carros e máquinas de tabaco em Santiago do Cacém e Vila Nova de Santo André, mas foram capturados pelos militares da GNR na Comporta. Na viatura, furtada, tinham 1500 euros em tabaco e 140 euros em notas.
Carlos Botas, então comandante que montou a operação, dirigiu-se ao local e já com os suspeitos algemados pegou um chicote de fibra animal (vulgarmente conhecida por “picha de boi”) e desferiu várias pancadas nas costas, na região dorsal, nas nádegas, nos braços e nas pernas enquanto lhes dizia “na minha zona ninguém rouba” “deem o recado aos vossos amigos que esta zona é minha” e ainda “não me olhem nos olhos”.
Já no posto da GNR da Comporta, Carlos Botas levou outro para o parque de estacionamento onde lhe desferiu mais chicoteadas. Ficou provado que o arguido quis que os suspeitos, já referenciados por crimes violentos, passassem a mensagem a colegas criminosos sobre o que sofreram nessa noite, evitando assim actos semelhantes no futuro na área da GNR de Santiago do Cacém.
Durante a leitura do acórdão de sentença, em março de 2018, o coletivo de juízes condenou a atuação de Carlos Botas por ir contra à conduta que deve ter um agente policial num Estado de Direito e perante “alguém algemado sem capacidade de resposta”. O coletivo decidiu pela não suspensão da pena, uma vez que não viu, “em nenhum momento, qualquer sinal de arrependimento por parte do arguido, o que leva a crer que em situações semelhantes no futuro, venha a fazer o mesmo”.
“Não temos qualquer direito de fazer justiça privada e como agentes do Estado ao serviço do Estado de Direito, temos que ser os primeiros a garantir os direitos dos seres humanos”, referiu António Gabriel dos Santos. O juiz considerou ainda que os suspeitos “até podem ser homicidas e violadores da pior espécie, mas aquando da sua detenção têm sempre uma aura intocável de direitos que nenhum organismo do Estado pode violar”.
Quanto aos suspeitos, vítimas de tortura, viriam a ser condenados, em janeiro de 2012 pelos crimes de furto simples e qualificado, dano e consumo de estupefacientes. As penas, duas suspensas e duas efetivas, variaram entre os dois anos e dez meses aos três anos e nove meses.