Entre a mente e a letra

Entre a mente e a letra

Entre a mente e a letra

A fuga e o reencontro com o destino

Maria de Jesus nunca aceitou verdades absolutas. Sempre questionou, sempre quis mais. Primeiro, fugiu da literatura. Depois, fugiu da educação. No fim, percebeu que ambas a esperavam de braços abertos. O seu percurso começou com o estudo da psicologia, uma escolha que, segundo a própria, foi motivada por uma espécie de revolta contra a tradição familiar e pelo desejo de emancipar-se. O seu pai, ligado às letras, esperava que seguisse o mesmo caminho, mas escolheu, primeiro, traçar uma rota própria. “Foi uma revolta contra o meu pai”, confessa, quase a rir. Foi na Escola Superior de Educação de Setúbal (ESE), em 1986, que encontrou um terreno fértil para desenvolver a sua vocação de ser docente. “Os primeiros anos foram muito estimulantes, era uma equipa muito boa, muito unida”, diz, revelando o espírito de ambição que todos partilhavam. Entrou nos efervescentes anos 80, quando tudo ainda estava a ser inventado. “Era um tempo de fazer acontecer” na formação pedagógica de professores. Mas, ele trouxe deceções, e o entusiasmo deu lugar à frustração. “A educação foi desiludindo cada vez mais”, admite. A escola mantinha-se um espaço de obrigações, não de descobertas. “A maior parte das vezes, os miúdos estão na escola porque tem que ser.” Foi nessa altura que a literatura voltou a chamá-la. Sem pedir licença, sem fazer barulho. “Acabei por voltar àquilo que, na altura, recusei.” O regresso à literatura aconteceu assim, de forma natural, mas foi a interseção entre as letras e os estudos feministas que a arrebatou de vez. Doutorada em Literaturas Românicas, dedicou-se a resgatar as vozes esquecidas de escritoras que, durante a ditadura portuguesa, foram silenciadas. “Ninguém sabe que existiram”, lamenta. O seu trabalho, então, tornou-se uma missão: trazer essas histórias à luz, dar-lhes o lugar que lhes foi negado na história oficial. Se há algo que a define, é a vontade insaciável de continuar a aprender. “Já não tenho anos de vida suficientes para todos os projetos que tenho em mente”, brinca, admitindo que parar nunca foi uma opção. A pressa de viver, de investigar, de partilhar conhecimento continua a movê-la. O saber compartilhado, a consciência expandida, a certeza de que plantar dúvidas pode ser mais poderoso do que ensinar respostas. Após 30 anos na ESE, ao relembrar os seus primeiros passos nos corredores, apenas uma palavra não é suficiente para definir a sua passagem: desafiante, rica, unida e extraordinária. Quando questionada sobre como gostaria de ser lembrada, ela hesita. “Talvez como alguém que gosta de trabalhar em equipa, que nunca acha que tem razão sozinha, que acredita que o conhecimento se constroi”. Na mistura entre as letras e a mente humana, o que mais a estimula é a necessidade de “estar viva, sempre presente e com a cabeça a funcionar”.

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