Albérico Afonso Costa reconstrói os 19 meses que fundiram uma comunidade única no país. Momentos fundadores feitos de episódios que só podiam ter lugar em Setúbal
Quando me atrevo a escrever sobre um livro advirto sempre que não costumamos – nem eu nem o DIÁRIO DA REGIÃO – fazer crítica literária, mas que o fazemos quando uma obra relacionada com a região, pelo seu mérito, a isso nos “obriga”.
Este imperativo de consciência, que cumprimos com algum atraso, é mais do que justificado no caso de ‘Setúbal Cidade Vermelha’, pela relevância, interesse e nível do livro que Albérico Afonso Costa no oferece.
Se ‘ignorar o que aconteceu antes de nascermos é o mesmo que permanecermos sempre crianças”, como disse o grande orador Cícero em 46 a.C, este trabalho sobre a História de Setúbal entre 1974 e 1975 assume a dupla importância de fornecer conhecimento àqueles que nasceram pouco antes ou já depois dessa altura e, simultaneamente, ajudar a entender porque nasceu diferente a conjuntura da democracia nesta cidade.
É por isso, desde logo, um livro de ligação e proximidade. De ligação, como todos os livros de história, porque enlaça a vida dos mais jovens de nós à dos nossos antepassados recentes, mas, sobretudo, por tratar a passagem da ditadura à democracia, o período mais complexo e atribulado da história moderna de Setúbal. De proximidade porque este trabalho é sobre um ontem que é nosso, de uma comunidade pequena, perfeitamente identificada e extraordinariamente diferente das demais existentes em cada cidade do país.
Setúbal, que ganhou o epiteto de ‘Cidade Vermelha’, e que assume, neste domínio, a bandeira de representação da região envolvente, conserva ainda hoje um código de ADN político e ideológico próprio, que a mantém distinta, para não dizer única, no panorama nacional.
São estas idiossincrasias que Albérico Afonso nos ajuda a entender melhor num total de 335 páginas (excluindo cronologias, entrevistas, fontes e outras utilidades, são 220 páginas de narrativa histórica), divididas em cinco partes, numa sistemática que surge como natural.
A primeira parte apresenta a evolução da cidade desde o ciclo conserveiro à industrialização da cidade e entra logo no impacto do 25 de Abril em Setúbal, relatando como a cidade acordou nesse dia e como viveu nos seguintes.
Os desafios colocados ao poder autárquico, com as peripécias da acção da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Setúbal, o papel do Círculo Cultural de Setúbal, a génese do Movimento Democrático de Setúbal, as novas formas de poder popular como as comissões de trabalhadores e de moradores, a organização de cada partido na cidade, ou a análise de como a imprensa local se relacionou com a mudança política são alguns dos aspectos tratados no livro que apresenta também casos específicos de instituições concretas, como a criação da Diocese de Setúbal, o Asilo Dr. Paula Borba, ou a Santa Casa da Misericórdia de Setúbal.
O curto período que o livro trata, somente 1974 e 1975, é obviamente justificado pela extrema complexidade destes dois anos ardentes do PREC, que, como o autor confessa lhe causou “mais inquieta apreensão” do que qualquer outro dos livros que já escreveu, porque nenhum outro teve investigação de “dificuldade tão manifesta”.
A ‘manifestação das betoneiras’, promovida pelos patrões da construção civil, que ocuparam a Praça do Bocage com máquinas no dia 14 de Junho de 1974, a origem do ‘baptismo’ de Setúbal como Cidade Vermelha, com o documentário ‘Setúbal Ville Rouge’ feito em 1976 por Daniel Edinger e Michel Lequenne, e o relato do 7 de Março são alguns dos episódios específicos de Setúbal relatados entre outros, mais “nacionais”, como o 28 de Setembro, o 11 de Março ou o 25 de Novembro, que são abordados na perspectiva local.
Entre as várias datas do PREC ganha destaque o 7 de Março de 1975, que, como diz o texto, “foi na cidade do Sado”, ou seja, um acontecimento de repercussões nacionais, com relação com o 11 de Março, que teve lugar em Setúbal e que constituiu o momento mais quente desses tempos conturbados na cidade.
A 7 de Março foi morto a tiro João Manuel Lopes, um jovem que saía do Grande Salão Recreio do Povo, na Avenida Luísa Todi, por volta das 23h30, quando a PSP disparou rajadas de metralhadora na sequência de confrontos com um grupo de pessoas que se opunha à realização de um comício do PPD no Pavilhão do Naval.
Albérico Afonso Costa conclui que Setúbal é “a cidade onde a trama da Revolução melhor se urde” e onde “melhor se sente a mudança abrupta que o 25 de Abril trouxe”, encontrando uma energia “transgressora” e até “insurrecional” que fizeram deste período revolucionário setubalense caso único.
O autor defende que o modo de ser da cidade foi alterado por estes “momentos fundadores”, numa transformação que o tempo não apagou e que representa um ganho.
Mesmo os que não concordem com a interpretação do historiador, também ele um homem de esquerda, não podem deixar de reconhecer a seriedade de propósitos e a honestidade de tratamento dos factos que coloca neste trabalho. O valor da obra de Albérico Afonso Costa, o mais profícuo historiador actual de Setúbal, é credor do nosso reconhecimento colectivo.
O único aspecto em que a leitura pode sentir o gosto da falta de alguma coisa é talvez no campo da história comparada. ‘Setúbal Cidade Vermelha’ não nos diz nada sobre como era o caso de outras cidades que nos permita perceber o nosso grau de diferença. O autor diz que a abordagem do 25 de Abril procura “situar-nos no país que éramos em 1974’, mas essa preocupação não existe em domínios sócio-económicos relevantes como sejam a escassez e o preço da habitação ou a profusão de órgãos de poder popular.
Uma limitação que não deslustra o valor e qualidade do livro.
Um dos muitos méritos desta obra, é o de fazer a justiça de destacar o contributo de várias figuras, para o desenrolar dos acontecimentos, e de outros trabalhos anteriores para a fixação dos factos e opiniões sobre este período da história local. A importância do livro ‘Memórias da Revolução no Distrito de Setúbal – 25 anos depois’, de Pedro Brinca e Etelvina Baía sai valorizada com o reconhecimento público que Albérico Afonso lhe presta, e bem, não apenas nos agradecimentos mas, sobretudo, no vasto recurso a informações, citações e reproduções ao longo de ‘Setúbal Cidade Vermelha’.
Além deste livro, a obra de Albérico Afonso Costa sobre a História de Setúbal inclui outros dois livros, nomeadamente ‘História e Cronologia de Setúbal (1248-1926)’, editado em 2011, e ‘Setúbal sob a Ditadura Militar (1926-1933)’, e ficará completa com o período sobre o Estado Novo (1933-1974) a cuja investigação o historiador anunciou já que dedicará os próximos anos.
Uma palavra também para os responsáveis pela capa e pelo design de comunicação do livro, José Teófilo Duarte, João Silva e Lília Correia, da DDLX, que inscrevem com este trabalho mais um traço da bonita pegada artística que vão deixando em Setúbal, e que é outra forma de fazer História.