“Quem vem para o Tarrafal, vem para morrer”
Manuel dos Reis, director do campo
Todas as ditaduras, quer sejam de matriz comunista, quer fascista, caracterizam-se por não haver espaço para as oposições; o modus operandi é o mesmo, pelo que, quaisquer vestígios de contestação, eram e são punidos com a prisão, o degredo, a tortura e o assassínio
Vejam o caso mais recente de Alexey Navalny na Rússia de Vladimir Putin.
O regime do Estado Novo de Salazar não era excepção.
Hoje vamos falar do Tarrafal.
Em 1936, num dos locais mais inóspitos da ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, o regime instituiu a Colónia Penal do Tarrafal, sob o controlo do PVDE (mais tarde PIDE) e que era destinado aos prisioneiros considerados “irrecuperáveis”.
Decorrente dos processos sumários a que tinham sido submetidos, muitos dos detidos não tinham sequer recebido nenhuma condenação oficial. Logo, não existia nenhuma garantia de equidade e muito menos, de justiça.
E daí que permaneciam encarcerados anos depois do fim da própria pena, tendo alguns sido transferidos para o Tarrafal.
As condições do campo eram péssimas. O clima tropical era caracterizado por um calor insuportável e por uma humidade elevada que tornavam o ar quase irrespirável.
A disciplina era férrea, a comida escassa e as condições de trabalho extenuantes.
Uma das punições preferida pelos guardas era a frigideira, um paralelepípedo em cimento armado, sem janelas, no qual se podia estar fechado mais de um mês, sem possibilidade de protecção do calor infernal, bem como um regime alimentar extremamente deficitário.
Formas de violência física e psicológica eram habituais e programadas deliberadamente para enfraquecer os detidos, os quais eram muitas vezes privados de medicamentos ou expostos às picadas do mosquito anopheles, insecto responsável pela malária.
A morte dos detidos era atribuída a causas “naturais” desvinculando os guardas de qualquer responsabilidade, a partir do momento que a legislação em Portugal não previa a pena de morte.
Uma outra punição sádica era constituída por uma cela de isolamento denominada ironicamente a Holandinha, assim chamada em virtude da Holanda constituir um dos países de emigração preferencial dos cabo-verdianos.
A Holandinha era uma pequena cela, construída próximo das cozinhas e cujo objectivo era não somente tornar a temperatura insuportável, mas também uma forma adicional de torturar psicologicamente os detidos com os perfumes que emanavam da comida que lhe era negada.
Em 1954, após dezoito anos de actividade, o campo do Tarrafal encerrou as portas, tendo sido reaberto no início dos anos 60, quando começaram a disseminar-se as lutas anti-coloniais e os consequentes movimentos de libertação dos futuros países, nessa altura sob dominação colonial portuguesa.
Uma das peculiaridades do regime do Estado Novo, residia no facto de, contrariamente a outros regimes de matriz fascista, tais como a Alemanha e a Itália, não recorrer a uma retórica totalitarista de massas, evitando as grandes manifestações populares.
Salazar pretendia sobretudo a manutenção do status quo e privilegiar os aspectos de uma suposta tradição portuguesa, feita de vida campestre e frugal.
A letra da música “Uma Casa Portuguesa”, representa bem esse estado de espírito: “Basta pouco poucochinho pra alegrar, uma existência singela, é só amor pão e vinho, e um caldo verde verdinho, a fumegar na tigela”.
Deus, Pátria e Família eram os alicerces do regime. Um mundo ideal no qual não havia lugar para os opositores políticos.
A calma e a tranquilidade em Portugal deviam ser preservadas a todo o custo, motivos pelos quais a PIDE detinha um papel fundamental, podendo contar com uma eficaz rede de informadores, assegurando-se, dessa forma, um controlo sobre a sociedade baseado no temor e na desconfiança.
O campo do Tarrafal representou uma tentativa de resposta às exigências repressivas do regime, tendo recebido 576 presos, dos quais 37 ali morreram.
O Tarrafal representa a face mais obscura e iníqua do sistema carcerário e de uma forma mais abrangente, do próprio regime do Estado Novo.
Fica aqui uma singela homenagem a todos aqueles que se privam da própria liberdade, pela liberdade dos outros.