21 Maio 2024, Terça-feira

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Sempre na ordem do dia

Sempre na ordem do dia

Sempre na ordem do dia

“Por muito paradoxal que nos possa parecer esta palavra, nós podemos avançar que, na história da cultura humana, o nosso tempo arrisca-se a aparecer um dia como que marcado pela prova a mais dramática e mais laboriosa que possamos imaginar, a descoberta e a aprendizagem do sentido dos gestos os mais “simples” da existência: ver, escutar falar, ler – estes gestos que metem os homens em relação com as suas obras, e estas obras revolvidas na sua própria garganta, que são as suas “ausências de obras” (tradução livre de “Do Capital à Filosofia de Marx”, prefácio a “Lire Le Capital”, de Louis Althusser, 1965).

Se bem me recordo, a evocação deste texto já teve razão de ser, nas páginas da Península, fruto da experiência da entrega de um documento de propaganda eleitoral do PCP a um homem de idade, quando numa manhã bem cedo – nos Foros do Trapo, talvez – o recebeu das mãos de uma brigada de militantes comunistas, a qual ao entardecer do dia, de regresso a Setúbal, o reencontrou no mesmo local teimosamente a percorrer com a vista já cansada o texto que permanecia intemporal. Se há sempre alguém que resiste, ali estava a prova de que, recortado por um magnífico sol poente, igualmente há sempre alguém – decididamente o mesmo sujeito – que lê.

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Vem isto de novo a propósito da venda num contacto directo com trabalhadores de várias empresas e com a população em geral do Avante!, calhando-nos agora, e outra vez, a Autoeuropa  (está na ordem do dia), onde no caudal da entrada e saída do turno da tarde de centenas e centenas de trabalhadores, particularmente de jovens trabalhadores (a quem a Administração chama “colaboradores”), um deles, já com o órgão central do PCP na mão mas com o passo corrido para o autocarro, exclamava em jeito de desafio e comprometimento: “Vocês apostam que alguém lê…”

Se Althusser tivesse conhecido as duas experiências, quiçá a sua formulação estabelecesse como arco do tempo o tempo de gerações onde a quietude de uma leitura dá progressivamente lugar – imagina-se – a um regresso sem tempo para nada senão para, produzida pelo grande capital, uma ideologia da classe dominante que cuida da vacuidade das emoções e do pensamento como padrão dominante. O homem que lia naquele tempo todo que citámos aparentava ser indiferente ao resultado, não por demissionismo mas só, adivinha-se, por tenaz tenacidade. O rapaz a correr com o Avante! oferecia-nos a garantia de usá-lo o melhor possível. É a outra dimensão dos gestos os mais “simples” da existência.

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