27 Julho 2024, Sábado

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“Não se criam condições para fixar médicos em Setúbal”

“Não se criam condições para fixar médicos em Setúbal”

“Não se criam condições para fixar médicos em Setúbal”

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O coordenador da USF du Bocage defende que a solução passa por promover a cidade e a região junto das classes profissionais de saúde. E considera necessário melhorar a articulação entre Saúde, instituições e Poder Local

 

Figueiredo Fernandes, 65 anos, assistente graduado de Medicina Geral e Familiar que coordena a USF du Bocage, em Setúbal, faz um diagnóstico à Saúde. E é peremptório ao afirmar que “não é admissível nem conduz a um trabalho eficaz haver ACES como o da Arrábida, que prestam serviços a 232 804 utentes, que gerem 23 Unidades de Saúde e têm um mapa de pessoal enorme”.

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Meio ano após a abertura, que balanço faz à Unidade de Saúde Familiar (USF) du Bocage?

Bastante positivo apesar dos momentos muito difíceis da pandemia, pois provou-se com a abertura desta que a reforma dos cuidados de saúde primários não necessita de ser “congelada” ou confinada. Houve um enorme esforço de equipa e uma grande compreensão dos utentes. A equipa cresceu (somos agora 7 médicos, 7 enfermeiros e 6 secretários clínicos), o relacionamento com o Poder Local (Câmara e Junta de Freguesia) adquiriu uma nova dinâmica, mantemo-nos firmes e os nossos rostos têm um sorriso de esperança que queremos transmitir aos nossos 12 711 utentes, dos quais 1 205 têm mais de 75 anos.

Que diagnóstico faz da reforma dos cuidados de saúde primários?

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A reforma está de boa saúde pelo esforço dos profissionais que nela participam e trabalham. A reforma de 2005 permitiu a melhoria na acessibilidade aos pacientes, na pontualidade do atendimento, na satisfação dos usuários e também dos profissionais de saúde.

A USF du Bocage pode ser enquadrada no “jogo” da “batota” nos cuidados de saúde, que denunciou, há três anos, em artigo no Jornal Médico?

Obviamente que não. Quando me referia à “batota” estava a denunciar a desigualdade de oportunidades e de recursos que existiam e existem entre as UCSP [Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados] e as USF. Aqui em Vale do Cobro temos a UCSP São Sebastião com 2 médicos para uma população de 24 055 utentes, dos quais só 3 345 têm médico de família. Isto é uma injustiça, uma enorme desigualdade. Não se criam condições para fixar médicos em Setúbal.

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No mesmo artigo, revelou que para se dotar algumas USF de utentes e recursos humanos são violados compromissos com as UCSP. Como é que isso acontece e de que forma afecta os utentes?

As USF com equipas multiprofissionais motivadas, portadoras de uma cultura de responsabilização partilhada e com práticas cimentadas na reflexão crítica e na confiança recíproca, são o principal activo e as mais-valias estratégicas que criam satisfação dos profissionais que se reflecte na prestação de cuidados nos utentes. Isso não acontece nas UCSP por motivo da organização dos profissionais, no trabalho burocrático a que estão sujeitos e nas listas volumosas de utentes que os profissionais possuem. Aqui os utentes saem menos satisfeitos. Um estudo sobre satisfação dos utentes do Professor Pedro Ferreira do Centro de Estudos e Investigação da Universidade de Coimbra, com uma taxa de resposta de quase 90%, aponta para diferenças visíveis na satisfação entre UCSP (72,7%), USF modelo A (76,8%) e USF modelo B (79,5%).

Disse também que é feito “uso preferencial de listas obrigatórias de medicamentos não comparticipados, cujo encargo é total para o cidadão e mínimo ou quase nulo para o indicador de custo da organização”. Quem é responsável?

No início, os indicadores de desempenho para a contratualização das USF restringiam a actividade avaliada por esses mesmos indicadores a uma pequena área da prática clínica e, ao contratualizar metas com valores muito elevados, conduziu ao afunilamento e à focalização da actividade clínica, com eventuais consequências negativas para os utentes. Por outro lado, a fraca evidência científica de alguns indicadores, a utilidade muito discutível de outros, bem como a dificuldade em medir ganhos em saúde originava excessos da Medicina, nomeadamente medicalização, consumismo e iatrogenia. Responsáveis? As agências de contratualização das ARS e a anterior Missão para os Cuidados de Saúde Primários. Houve melhorias num esforço final que a MCSP promoveu e a contratualização tem, hoje, mais indicadores de qualidade e menos de quantidade.

Ainda pensa que se houvesse uma avaliação séria muitas USF seriam reprovadas?

Claro. Nem todas as USF funcionam como sendo o núcleo do sistema de saúde e nem todas as UCSP são o “patinho feio” dos cuidados de saúde primários. Uma avaliação periódica das Unidades de Saúde por parte da Equipa Regional de Apoio das ARS criaria mais equidade e melhor visão do que está bem e do que está menos bem.

Considera positiva a instalação de uma USF num hospital?

Cuidados primários e cuidados hospitalares são cuidados de saúde diferenciados, mas que devem ser complementares. Às USF o que é das USF e aos hospitais o que é dos hospitais. A óptima articulação de cuidados precisa-se e é urgente que fortifiquem.

Que acções deveriam ser adoptadas para melhorar o desempenho nas unidades de saúde? Os conselhos clínicos e da saúde são solução?

Maior autonomia dos ACES e das suas unidades funcionais, incluindo autonomia financeira, acabar com os mega-ACES, a criação e eficácia dos conselhos da comunidade, serviços de apoio aos ACES (Unidade de Apoio à Gestão e Gabinete do Cidadão) mais actuantes e menos burocratizados.

Não é admissível nem conduz a um trabalho eficaz haver ACES, como o da Arrábida (Setúbal, Palmela e Sesimbra), que prestam serviços a 232 804 utentes, que gerem 23 Unidades de Saúde e têm um mapa de pessoal enorme. Nunca se fez “o luto” das Sub-regiões de Saúde.

Os conselhos clínicos não são por si só uma solução, mas tão-somente um complemento técnico-científico das entidades competentes, garantindo a melhoria contínua da qualidade dos cuidados de saúde, fazendo aprovar as orientações clínicas relativas à prescrição medicamentosa e meios auxiliares de diagnóstico, promover auditorias externas e internas e verificar o grau de satisfação dos profissionais. É este o seu o papel.

Em que é que os ACES se destacam e em que mais falham?

Destacam-se por serem serviços públicos com alguma autonomia administrativa, têm por missão a prestação de cuidados de saúde primários à população de determinada área geográfica, estabelecem, qualitativa e quantitativamente, os seus objectivos e os recursos afectados ao seu cumprimento através de contratos-programa entre os directores executivos dos ACES e os conselhos directivos das ARS.

Ficam aquém das suas potencialidades ou falham porque a sua autonomia não é tão efectiva como se desejaria, também por responsabilidade do Governo da República, dada a sua burocratização não estão totalmente disponíveis ao cumprimento da promoção da saúde e prevenção da doença, à investigação em saúde. Está prejudicada a intercooperação das unidades funcionais, não são criados mecanismos de simplificação de procedimentos junto da sociedade e serviços públicos, nomeadamente o Poder Local, ao não promoverem a criação do conselho executivo e a não promoção dos conselhos da comunidade.

Se pudesse decidir uma medida para melhorar os cuidados de saúde primários em Setúbal, qual seria?

Criação de mais unidades de saúde, repensar o ACES Arrábida, arranjar medidas para cativar a vinda de novos profissionais de saúde, promover a cidade e a região junto das classes profissionais de saúde, melhor articulação entre os diferentes cuidados de saúde e entre estes e as instituições privadas de saúde e IPSS, bem como com o Poder Local.

É verdade que os utentes são cada vez mais vistos como números para fins estatísticos?

Infelizmente temo que sim. Hoje o importante é o número de óbitos por dia e não a qualidade de vida dos que sobrevivem. Continuo a acreditar que os cuidados de saúde primários e os seus profissionais consigam passar a mensagem: as pessoas em primeiro lugar.

Profissionais podiam ter sido melhor tratados pela tutela mas continuam empenhados

Pode-se medir o pulso às “tropas médicas”, com quase um ano de pandemia às costas?

Apesar de todos os obstáculos, das sequelas físicas e psíquicas que a covid-19 provocou, há uma vontade enorme de dizer presente e contribuir para o sucesso das políticas adoptadas. Esperamos pelo próximo 30 de Junho, data da aprovação da USF du Bocage, com o rosto de outras feições. Até lá…

Os profissionais de saúde podiam ter sido melhor tratados pela tutela?

Sim. Foi-se sempre atrás da pandemia e nunca fizemos prevenção da mesma. Apesar de ser uma doença desconhecida muita coisa poderia ter corrido melhor. A comunicação e a informação, a criação de alternativas ao esgotamento dos serviços de saúde e dos seus profissionais, a criação de equipas de medicina de catástrofe, uma melhor articulação com as autarquias, maior autonomia das estruturas de saúde no combate à pandemia, são alguns exemplos. Combater a covid-19 no Alentejo, nos Açores, em Trás-os-Montes será diferente de fazê-lo nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa ou Porto, com toda a certeza.

Bela Vista é boa oportunidade para o Centro de Saúde de Santos Nicolau

A Praça de Portugal deixou de ser hipótese para o futuro Centro de Saúde de Santos Nicolau e a Bela Vista uma possibilidade em cima da mesa. Houve desenvolvimentos?

É uma pergunta que tem de ser feita à ARSLVT e à Câmara Municipal. Como profissional vejo com bons olhos a abertura de novas unidades de saúde. Não é admissível que na área geográfica de São Sebastião, com cerca de 50 mil utentes inscritos nas 3 unidades de saúde, 77% estejam inscritos num centro de saúde, Vale do Cobro. Além de que a UCSP Santos Nicolau não tem condições físicas para ser uma unidade de saúde. Bela Vista seria uma boa oportunidade de criar um serviço público importante junto de uma população mais vulnerável e com maiores necessidades de promoção de saúde e, urgente, criação de programas em rede para prevenir a doença.

Na forja estão também os centros de saúde da União das Freguesias de Setúbal e de Azeitão.

Excelente, porque muitas dessas estruturas não têm as melhores condições físicas para servirem as populações.

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