As terças-feiras de Entrudo são assinaladas com um tradicional banho nas águas do Tejo. A folia nos desfiles desconhece limites. Antigo pároco não tinha descanso e a coisa até metia polícia
É sagrado: ao almoço de domingo e terça-feira de Carnaval enfardam, respectivamente, caldeirada e bacalhau com grão – a segunda-feira deixou de figurar na agenda bem como os jantares durante os três dias. Mas a tradição dos Comilões no Montijo ganha maior dimensão no dia do Entrudo, quando membros da associação mergulham nas águas do Tejo que banham a cidade.
A festa é deles, deste grupo de foliões que acaba de assinalar 72 anos, fundado que foi a 27 de Fevereiro de 1948 com o estrito intuito de celebrar a época carnavalesca. Já lá vão mais de seis décadas a cumprir o ritual da banhoca em pleno Inverno, com um curto interregno de permeio, e desde há alguns anos sem realeza.
“Dantes tínhamos um andor que era carregado em ombros por quatro homens. Em cima do andor seguia um trono onde se sentava o rei dos Comilões – também conhecido como santo comilão –, que era o Gança, já falecido, mas antes foi o Mira”, começam por lembrar Mário Baliza, 69 anos, e Adelino Baliza, 65, presidente e vice-presidente da associação, respectivamente. “Ao chegarmos ao Cais das Faluas, o primeiro a ir ao banho era sempre o rei. Fazia a benção e mergulhava de cima do andor. Só depois é que os outros, os que quisessem, entravam na água. Foi assim desde o início e até o Gança deixar de o fazer.” A realeza viria então a dar lugar a apenas uma nova santidade. “Foi quando se começou a utilizar um novo santo comilão, a nossa mascote, uma escultura gigante das Caldas, que é mergulhada nas águas antes de todos, desde o recomeço das comemorações carnavalescas no Montijo”, contam.
Mesmo durante os anos em que não houve corsos na cidade, cumpriu-se o ritual, que a partir de 2002 tem sido ininterrupto. “Até mesmo quando a maré estava vazia. Não havia água, veio um autotanque dos bombeiros dar-nos o banho. Foi de canhão de água ou agulheta, ou lá como se chama, para se cumprir a tradição.” E em ano sem maré nem soldados da paz, houve quem arranjasse solução. “Um elemento do grupo, seguido depois por mais quatro ou cinco, foi banhar-se na estátua do mestre Lagoa Henriques, na Praça da República, em 2008 ou 2009. Passados 10 minutos, estava a polícia a vir buscá-lo”, recordam, soltando uma risada cúmplice.
Nem a época invernal constitui obstáculo para quem pertence à família comilona. “O Rogério Alves (Ginja), que está connosco há cinco anos e que começou a ir ao banho desde então, é que diz bem: não há melhor vacina. Nunca mais se constipou nesta época.”
O padre e a polícia
Certo é que não há nada nem ninguém que pare os Comilões quando chega à hora de comemorar o Entrudo. “Em 2002, fizemos o Carnaval sozinhos. Saímos da Montiagri, de um pavilhão que foi a única coisa que a Câmara Municipal nos emprestou, com um carro alegórico, uma charanga e o nosso grupo de cerca de 120 pessoas”, sublinha a dupla, admitindo que, pelo caminho, perdeu-se uma tradição. “Dantes também assinalávamos o enterro do bacalhau, às terças à noite. Tínhamos uma carrinha onde colocávamos um caixão e um gajo lá dentro a fazer de morto. As mulheres iam atrás e uma a fazer de viúva. Todas a chorar como carpideiras. Agora já não.”
Ao mesmo tempo que fazem questão de vincar o contributo do vice-presidente Luís Pereira – “é mais conhecido como Luís Pompílio e é, desde há muitos anos, o cérebro das actividades da associação”, dizem –, os primos Mário e Adelino Baliza reconhecem que “a malta dos Comilões” é imparável nas celebrações do Entrudo. E episódios antigos atestam bem uma espécie de velha máxima que parece levarem muito a peito. É Carnaval ninguém tem de levar a mal. Nem o padre, que assim que os via “entrava em transe”, confessam.
“No final dos desfiles carnavalescos das terças-feiras, simulávamos uma procissão, antes do ritual do mergulho. Com padre e tudo e a devoção ao rei Gança. A coisa começou a dar barraca, porque parecia mesmo uma procissão e o padre Manuel Gonçalves, que já faleceu, acabou por ir fazer queixa à polícia. Lá foi a malta chamada à esquadra”, lembram, com novo sorriso meio trocista a soltar-se, adiantando: “Disseram-nos que aquilo não podia ser. Assumimos o compromisso de não fazer mais. Só que nesse ano já tínhamos feito e no ano seguinte lá estávamos outra vez a fazer a procissão. Lá viram que não faziam nada dos Comilões…”
A arrelia provocada no pároco não foi única. “Numa outra vez, o nosso grupo numa carrinha de caixa aberta seguiu com a malta sentada nos taipais, de costas para a estrada, com as calças para baixo, rabo ao léu e um cordel atado à cintura com um chouriço mouro pendurado a imitar cocó. E pronto, o padre apresentou queixa por atentado ao pudor.”
Porém, não foi só o padre que não teve descanso com a forma como os Comilões gozavam o Carnaval. O tempo ficou há muito para trás, mas Mário e Adelino ainda se lembram de um episódio que fez despertar a ira numa população vizinha. “Num ano fizemos um comboio para ir dar a volta a Alcochete [na antiga e já esbatida rivalidade entre os dois concelhos, a inexistência de comboio na vila alcochetana era utilizada como arma de arremesso jocosa pelos montijenses]. Só que alguém deu com a língua nos dentes e ao chegarmos a S. Francisco estava já lá Alcochete em peso à espera dos Comilões. Houve uma chuva de pedrada e tivemos de voltar para trás, senão dava-se ali um arraial de porrada”, relembram, salientando a concluir que hoje em dia a associação conta com 40 elementos que pagam a quotização durante os almoços de domingo e terça-feira de Carnaval.
Do Pablos ao Café Portugal sempre com a casa às costas
Os Comilões esperam e desesperam por uma sede desde o primeiro dia. Andaram sempre com a casa às costas, realizando as actividades em diversos espaços cedidos.
“Estivemos mais tempo nos armazéns do Pablos. Seguiram-se as instalações na Rua da Barrosa. Depois fomos para a Montiagri, de onde saímos para o antigo Café Portugal, onde nos mantivemos até 2010”, atalham Mário e Adelino Baliza, sublinhando: “Até 2010, no Café Portugal, promovíamos bailes e tínhamos 120 elementos a comer as refeições que tradicionalmente são organizadas na época carnavalesca.”
Hoje em dia continuam a lutar por uma sede que quase estiveram a conseguir. “Na altura, a Câmara de gestão PCP cedeu um terreno aos Comilões e no contrato éramos obrigados a iniciar a construção no prazo de cinco anos, só que isso não foi possível”, lamentam, acrescentando que esta direcção ainda quis começar a obra. “Mas o então vereador Miguel Cardoso, da gestão PS que veio a seguir, avisou-nos para não o fazermos, porque a autarquia precisava daquele terreno para aumentar a Montiagri, onde iriam fazer oficinas municipais. Até hoje nunca as fizeram”, atiram, lembrando os esforços ainda desenvolvidos. “Fizemos uma proposta para permuta desse terreno com aquele onde funcionam ainda hoje as oficinas municipais. Nunca foi aceite.”
Houve também, contam, uma promessa da autarquia de cedência de um armazém perto da antiga estação dos caminhos de ferro. Mas não só. “O pavilhão n.º 1 da Montiagri também foi discutido com a então presidente da Câmara, Maria Amélia Antunes, mas acabou por não se concretizar e até gerou alguma confusão”, recordam os responsáveis, salientando que o pior veio depois. “Há cerca de três anos fomos informados pela Câmara Municipal que tínhamos de reverter o terreno para a posse do município, por não termos iniciado a obra.”
Actualmente, os Comilões têm o espólio “espalhado por várias garagens particulares” e em algumas instituições, como “na Casa do Benfica em Montijo ou na SCUPA”. Entretanto, o infortúnio bateu-lhes à porta. “Perdemos algum património, já que um dos armazéns que servia para albergar os nossos materiais ardeu”, dizem, inconformados.
O sonho de terem uma sede mantém-se, porém, bem aceso. “O presidente da Câmara, Nuno Canta, deu-nos esperanças de que poderá ser no armazém da antiga estação dos comboios”, revelam, realçando que a associação pretende ter “maior dinamismo”, reactivando actividades como “o teatro de revista, entre outras”, mas para isso necessita de instalações.
Para trás já ficaram mais de sete décadas de rambóia, que têm contribuído para a animação geral durante as celebrações carnavalescas.
Associação apenas permitia homens até chegar o novo milénio
Só um ano antes de se entrar no novo milénio é que os Comilões deixaram de ser uma associação apenas para elementos do sexo masculino. Até então, as mulheres, apesar de serem fundamentais no funcionamento da associação – através da confecção das refeições tradicionais – não tinham direito a integrar o grupo.
A situação foi alterada “a partir do ano 2000”, depois de uma proposta de Mário Baliza que foi debatida internamente e que colheu entre a maioria dos membros. “Foram abertas as portas a mulheres, pois o contrário não fazia sentido, muito menos quando tinham grande trabalho”, justifica o presidente da associação, ao mesmo tempo que lembra que a decisão não foi pacífica. “Motivou algum desconforto e até alguns abandonos.”
O grupo teve durante bastante tempo um limite máximo de membros. “Dantes só se sentavam à mesa cem elementos. Nem mais um”, recorda Mário Baliza, acrescentando outro pormenor característico do funcionamento da associação. “Só quando um elemento saía do grupo é que entrava outro, dando-se primazia ao filho ou ao genro de quem saía”, conta.
Nos dias que correm, os Comilões fazem a festa com menos de metade de uma centena de elementos. Quotização, tal como é normal existir noutras colectividades, é coisa que não têm. Os foliões que pertencem ao grupo apenas despendem de dinheiro uma vez por ano: para pagarem as tradicionais refeições que organizam, actualmente, no domingo e na terça-feira de Carnaval.