Joana Lameira: “O teatro vai conseguir resistir mais tempo à utilização da IA”

Joana Lameira: “O teatro vai conseguir resistir mais tempo à utilização da IA”

Joana Lameira: “O teatro vai conseguir resistir mais tempo à utilização da IA”

A jovem actriz, que se sente simultaneamente setubalense e alentejana, tem muitos duvidas sobre a Inteligência Artificial. Não acredita ainda que as máquinas consigam substituir a essência do ser humano

Aos 25 anos (17/02/2000), Joana lameira, nascida em Beja, já se sente também setubalense, por viver à beira-Sado há oito anos. Licenciada e mestrada em Conservação e Restauro, pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, é no teatro que quer fazer carreira. Começou no Novo Núcleo de Teatro, da faculdade, no Monte da Caparica e ganhou, em 2024, o prémio de “Melhor Actriz Adulto”, no Festival Internacional de Teatro da Cidade dos Anjos, no Brasil.

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Enquanto não consegue dedicar-se à representação a tempo inteiro, trabalha na área do Restauro porque tem de “pagar as contas”. É especializada na área do têxtil e não acredita que a Inteligência Artificial (IA) chegue tão cedo a este sector. Mas confessa que, nesta matéria tem mais duvidas do que certezas. A maior convicção que demonstra é a de que é necessário regulamentar a IA.

Quando começou a interessar-se pela representação?

Em crianças temos todos muitos sonhos, achamos que queremos uma coisa e, se calhar por imaturidade ou por circunstâncias da vida, depois acabamos por ir mudando de rumo. Inicialmente, sentia que o palco me chamava para alguma coisa, mas não sabia bem o quê. Achava que era por causa da música. Toco guitarra, viola e ukulele. Portanto, tinha aulas de música e achava que era porque tinha de me expressar a cantar. E era terrível, porque cantava com os olhos pousados no chão, e tinha imenso medo de palco, mas adorava aquilo que estava a fazer naquele momento. Era um bocado contraditório, mas era a realidade. Depois comecei a perceber que, se calhar, não era a música propriamente dita que me chamava, mas algo mais. E comecei a interessar-me por teatro musical.

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Fiz uma espécie de colónia de férias para miúdos durante sete dias, e aquilo são aulas. Basicamente, teatros performativos que passam pela música, pelo teatro e pela dança. Acho que foi aí que comecei a aguçar aquela coisinha que estava aqui escondida, mas ainda não sabia bem o que era. Mais tarde, houve uma tour de um curso de artes performativas, que fez Portugal inteiro, e um dos sítios abrangidos era Beja e, na altura, fiz a audição e entrei. Lembro-me de ser caríssimo, mas eu sentia que precisava de lá estar. Fiz esse curso aos 17 anos e posteriormente fui chamada por uma das directoras da escola para fazer um espectáculo em Portimão. Em 2019, entrei no Novo Núcleo de Teatro. Foi aí que, efectivamente, me dediquei ao teatro.

Que importância teve o Núcleo de Teatro na sua formação artística?

O Novo Núcleo de Teatro está associado à Faculdade de Ciências e Tecnologias, que foi a faculdade em que eu tirei o meu curso de licenciatura e mestrado, em Conservação e Restauro. Vi um anúncio, fui a um ensaio e nunca mais saí. Devo isto também muito ao facto de ter tido uma encenadora excepcional, a Sandra Hung, que trabalhou com o Rogério de Carvalho, que faleceu recentemente. Em termos de técnica, de tudo aquilo que eu poderia saber naquela altura, foi ela quem me transmitiu. Actualmente, enfiei-me num curso de teatro de três anos.

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Que importância teve para si, e para a sua carreira, receber o prémio de Melhor Actriz no festival internacional brasileiro?

Em Portugal esse prémio não me serviu de nada. Não tem valor associado, porque, infelizmente, Portugal tem a mentalidade de que todos os prémios que bons são atribuídos cá, ou são os de instituições, festivais e concursos de grande valor. Não quer dizer que isto, um dia mais tarde, não me sirva para alguma coisa profissionalmente, mas, actualmente, não me serviu. Pessoalmente, claro que foi uma grande conquista. Não estava à espera e, tendo em conta a qualidade de outros artistas que estavam no festival, tem um valor acrescido. Não só por ser um prémio, mas porque é um reconhecimento por parte de um júri, de um colectivo, tem esse peso associado.

O que sonha conseguir na área do teatro, do cinema, na representação? Quais são os seus objectivos?

Tenho muitos pequenos sonhos, e não quero dizer que não exista um sonho maior, mas acho que estar sempre a matutar nisso e a pensar que tenho que chegar a esse ponto, naquela altura, em determinado lugar, talvez não seja a melhor estratégia. Mas, sendo prática em termos de objectivos, aquilo que eu gostava claramente era trabalhar a full-time em teatro, cinema, ‘acting’, o que fosse. Alguma coisa relacionada com a área e não ter que depender de outros rendimentos para conseguir subsistir e pagar contas. Esse é um grande objectivo. Também é fazê-lo para pagar as contas, mas sobretudo pelo amor àquilo que estou a fazer.

O seu curso de restauro já está concluído?

Sim, já fiz a licenciatura e o mestrado e é a minha fonte de rendimento principal, apesar de eu já fazer trabalhos profissionais enquanto actriz. E não foi o facto de fazer ou deixar de fazer trabalhos profissionais que me fez entrar na escola de teatro, foi porque achei que havia uma falha. O Novo Núcleo de Teatro deu-me muita coisa, mas também ficou muita coisa por fazer, muita teoria, muitas técnicas, por pelo menos, experimentar e perceber como funciona. E partiu também um bocadinho de mim a questão de querer saber mais sobre e não ficar estagnada naquilo que sei e utilizar apenas essas bases para crescer. Entre neste novo curso para crescer ainda mais e conseguir chegar a sítios diferentes.

A inteligência artificial já tem alguma presença a sua vida?

Em relação à inteligência artificial não tenho bem uma opinião formada. É um campo ainda muito cinzento para mim, especialmente enquanto artista, enquanto profissional, não na área de conservação e restauro, porque a inteligência artificial ainda não vai conseguir costurar, que é a minha área – eu sou especializada em têxteis –, mas enquanto artista é uma coisa dúbia. Ao mesmo tempo que nos facilita e nos tira o peso de tarefas mais simples e dar-nos mais tempo para fazer outras coisas, também pode-nos tirar-nos outras tarefas que nós queremos fazer. Utilizo a inteligência artificial, nomeadamente o ChatGTP, essencialmente para organizar informação, dados, e fazer documentos. Insiro a informação, que já tenho agrupada em documentos, e a IA dá-me o documento já feito. De outra forma iria demorar muito mais tempo para organizar essa informação. Eu também faço produção, que é uma coisa que requer agrupar muita informação, para distribuir por muitas pessoas, e aí eu acho que é uma boa ferramenta. Quando a inteligência artificial começa a entrar no campo artístico é que eu já tenho algumas duvidas, nomeadamente quanto ao design, aos guiões, e inúmeras coisas que são já da parte criativa humana. Aí já tenho várias questões. Sem esquecer toda a parte associada à questão climática e ambiental, à qual a inteligência artificial está interligada.

Quais são as suas reservas relativamente à área mais criativa? Receia que a IA venha pôr em causa o papel humano?

Da mesma maneira que nos pode facilitar no processo criativo, também pode incutir noutras pessoas a ideia de que é fácil chegar àquele sítio a partir da inteligência artificial. Porém, a inteligência artificial bebe de tudo o que já está criado, em conteúdos pré-existentes, “decora-os”, explora-os e depois cria a partir daí. E acho que aqui é onde a inteligência artificial suscita mais dúvidas. Não quer dizer que, ao longo dos anos, com o avanço tecnológico, isto não vá mudar. Mas é aquilo que me faz não acreditar; a Verdade que o ser humano tem a transmitir, a escrever. A IA, por muito que queira replicar, com palavras, utilizar a gramática a seu favor, a transmitir a Verdade, o ser humano tem sempre essa subtileza, essas nuances que acho que a inteligência artificial não consegue captar. Mas que pode ser um problema para profissões que actualmente existem, pode, claro.

Acha que na área da representação, a inteligência artificial vai ter maior dificuldade em substituir os seres humanos do que noutras áreas?

Acho que não, porque até já estamos a ver isso no panorama nacional, em novelas, quando há recriações. Eu não vejo novelas, mas vi alguns vídeos acerca disso, em que, já nem sei quem representa o quê, mas, basicamente, quando se fazem referências ao passado, recorre-se à IA para que os actores jovens fiquem mais similares ao pretendido. Essa parte já é totalmente criada com a inteligência artificial. Se me faz acreditar naquilo que estou a ver? Não. Se gosto daquilo que estou a ver? Também não. E depois temos todas as questões éticas. Tendo em conta também que a Inteligência Artificial bebe de coisas já pré-existentes, até que ponto é arte ou criação? Esta linha é muito ténue, a linha do certo e errado. Até que ponto se pode aceder a determinada informação e replicá-la, utilizá-la, até mesmo nas redes sociais.

Os direitos de autor, os valores artísticos…

Sim. Acho que não há sequer regulamentação suficiente ainda para que isto seja uma coisa eticamente correcta, em diversas profissões. Mas não acho que os actores estejam em risco pela utilização da inteligência artificial. Possivelmente existem pessoas que olham para o que é feito com IA nesta área e acham que está genial, que serve e que está óptimo, mas, para mim. não transmite a mesma coisa do que ser uma pessoa, um indivíduo, com uma cabeça própria, a fazê-lo. A inteligência artificial não substitui.

Não acredita que a inteligência artificial consiga substituir os actores físicos?

Pode substituir, mas não para mim. Isto também é uma coisa muito subjectiva, não é? Para mim, não é credível o que estou a ver. Mas, se calhar, para a pessoa ao meu lado já é credível. Acaba por ser muito subjectivo. E não quer dizer que isto não traga problemas associados, traz, obviamente.

A si não a convence, mas receia que, em termos de mercado, a IA acabe por alterar o sector?

Acho que isso vai acontecer sempre, com o avanço da sociedade, em todos os campos. Conforme vai havendo uma evolução da tecnologia, temos de nos adaptar à realidade actual. Creio que não substitui inteiramente, mas, isto é um campo muito cinzento para mim, porque não consigo ter uma opinião muito forte e definida. Não estou a ver como, pelo meno no teatro. A menos que sejam hologramas e, mesmo assim, nunca vai ter o peso da Verdade. Acho que o teatro vai conseguir resistir mais tempo à utilização da IA. Se bem que pode ser utilizada nos guiões, em voz-off e tudo mais, mas…

Como se mantém informada? Gosta de ler jornais ou de ouvir rádio? Tem alguma ideia do impacto que a IA possa ter na opinião pública, pela forma como possa vir a influenciar o jornalismo?

Estamos a falar de pessoas a utilizarem a inteligência artificial para espalhar informação…

As redes sociais estão a pôr em causa os meios de comunicação tradicionais o que nos deixa mais vulneráveis às fake news e há um ponto de interrogação cada vez maior sobre para vamos evoluir quando a inteligência artificial tiver uma palavra mais forte a dizer. Já pensou sobre estas matérias?

A minha irmã, por acaso, trabalha numa revista. Eu consumo notícias através das redes sociais, maioritariamente. Infelizmente, ou felizmente, não consumo muita televisão, então acabo por ver tudo online. Mas quando quero efectivamente ter a certeza de alguma coisa, recorro aos órgãos de comunicação social. Por exemplo, recentemente vi uma notícia acerca da primeira influenciadora totalmente criada digitalmente. Supostamente é portuguesa, ruiva, com sardas, o que também teve imensa piada, mas isto não me diz nada. Não consigo olhar para estas coisas e pensar que, sim, vou seguir e vou tomar como uma garantia que isto é uma fonte de inspiração. Para mim não é. Em relação à inteligência artificial como forma de divulgar informação, acho que é um perigo. Na verdade, está tudo relacionado com como é que regulamentamos isto. De que forma é que pode ou não ser utilizada esta ferramenta que nos pode ajudar tanto, mas que está a um passo também de nos prejudicar tanto? Está tudo ainda muito em aberto porque não há profissões relacionadas com a inteligência artificial que estejam suficientemente definidas. Creio que passa muito por regulamentar.

** Entrevista realizada em conjunto com Filipe Guardão

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