Considerado um símbolo de identidade local e tradições de Setúbal o espaço comercial comemora, este mês, mais um aniversário
Fundado em 1876 o Mercado do Livramento é mais do que um simples espaço de comércio local, é um ponto de encontro de gerações, onde se cruzam sabores, vozes e histórias que reflectem a alma setubalense. Com os seus painéis de azulejos da autoria de Pedro Pinto, datados do ano de 1929, retractam as várias actividades económicas da cidade. Entre a frescura dos produtos e o calor humano dos vendedores, o mercado continua a ser um local onde o passado e o presente se encontram diariamente.
Este foi um espaço que sofreu várias transformações ao longo dos anos. Após uma profunda requalificação, entre 2010 e 2011, o edifício manteve o seu carácter tradicional, sendo reconhecido internacionalmente pelo seu valor arquitectónico e cultural. Em Junho de 2014 – viria a ser considerado um dos melhores mercados de peixe do Mundo, segundo a revista norte- -americana USA Today.
A alma do mercado, está, no entanto, nas pessoas que ali trabalham. Muitos defendem a importância de preservar o comércio tradicional, enquanto alertam para as dificuldades actuais.
Ricardo Neves, em declarações a O SETUBALENSE, contou que está no mercado há 25 anos, onde é talhante, e que uma das principais prioridades é continuar a apostar no comércio tradicional. “Acreditamos no mercado tradicional e fazemos com que haja uma evolução no mesmo, indo sempre ao encontro de novas melhorias e novas atitudes para que o mercado seja sempre uma mais-valia e um ex-libris da própria cidade. Até porque temos uma concorrência cada vez maior, e o mercado tradicional noutras zonas tem sempre tendência a morrer, e fazemos com que isso não aconteça na cidade”.
Para quem procura um bom queijo pode encontrar Maria Celeste, que tem o seu negócio já há 50 anos, mas não deixa de destacar a diferença que tem notado dos que por aqui passam diariamente. “Houve alturas que só se via gente mais velha, agora já não, já se vê aqui muita juventude – já se importam mais com este tipo de coisas –, gosto sempre de os ver a passar por aqui. Inclusive agora tem-se visto muito turismo”.
Junto às bancas que nos presenteiam com o inconfundível cheiro a mar falámos com Valdemar, que salientou o esforço diário com que se entrega para manter vivo o negócio de família. “Estou cá há quatro gerações, porque o meu bisavô foi um dos fundadores disto, e hoje estou cá com todo o resto da família. Queremos continuar até que o mercado assim o permita, com muito trabalho, dedicação, procurar sempre servir o melhor, e trazer ao Mercado do Livramento sempre as pessoas com aquela vontade de poderem adquirir o melhor, sempre com muita entrega”, refere o vendedor de pescado.
Ainda a sentir a brisa do mar, noutra banca de peixe, encontramos Carlos Carmo, comerciante há mais de 40 anos, que reconhece que a realidade mudou e que manter os preços acessíveis é um desafio cada vez maior. “Tenta-se não exagerar em certos preços, mas actualmente não podemos fazer milagres. O peixe está mesmo muito caro, está caro se não houver quase nada, e está barato se houver fartura”.
Para alguém que cresceu a ver mães e avós fazerem compras no mercado, o impacto da nova realidade social é evidente. “O mercado está a ficar com metade da população. A mãe vinha ao mercado porque tinha tempo. Hoje a filha trabalha, já não pode vir. Mesmo que tenham vontade de vir ao mercado, não podem, trabalham a semana toda – sábado e domingo é quando podem vir”, complementa ainda.
Mas o mercado não vive apenas do lado de quem vende, quem ali compra também carrega histórias e rotinas, construídas ao longo de gerações como o caso de Joaquim, um cliente habitual que refere a qualidade e variedade dos produtos, como também a importância das melhorias que o edifício já recebeu. “Aqui tenho os produtos que vêm do campo que não existem nos outros lados. Aqui há qualidade e tem mais por onde escolher, tem mais variedade, fora as melhorias que houve no edifício que ajuda as pessoas a continuaram a vir aqui”.
Para outro cliente do espaço, também de seu nome Joaquim, mesmo apesar da qualidade que reconhece ao mercado, não deixa de salientar os desafios económicos que se enfrentam nos dias de hoje. “Os preços são muito elevados, o custo de vida está muito desequilibrado em relação aos vencimentos e às reformas. As pessoas com reformas baixas, por exemplo, não conseguem competir com o preço destes produtos de forma nenhuma”.
Num tempo em que o comércio de proximidade enfrenta múltiplos desafios, o Mercado do Livramento continua a afirmar-se como um espaço essencial para a vida da cidade. Aos 149 anos, mantém- -se um símbolo da identidade setubalense, sustentado pela dedicação dos comerciantes e pela fidelidade de quem o visita. Entre memórias, mudanças e resiliência, o Livramento resiste e renova-se, preparado para continuar a marcar o quotidiano da cidade por muitos mais anos.