A Arrábida universal de Sebastião da Gama

A Arrábida universal de Sebastião da Gama

A Arrábida universal de Sebastião da Gama

10 Abril 2024, Quarta-feira

Na Arrábida de Gama ecoam as vozes de santos e místicos como São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, ou Frei Agostinho da Cruz (aliás, Agostinho Pimenta. 1540-1619). Contudo, não me parece adequado circunscrever o Poeta numa ilha cultural excessivamente regional, quando o tema de Deus e das suas metamorfoses é transversalmente europeu e a avidez intelectual do jovem Sebastião não parece respeitar ou embaraçar-se excessivamente com fronteiras. Longe de querer filiar Sebastião da Gama numa genealogia exclusivamente nacional, transformando-a no aedo de agendas filosóficas demasiado precisas, parece-me possível vislumbrar na poesia do nosso Autor as dúvidas, hesitações e conflitos, certamente matizados com os traços e padrões da nossa cultura nacional, que caracterizam as demandas pelo transcendente na atmosfera europeia da morte de Deus, como ficou ilustrado tanto no helenismo romântico de Hölderlin, como no grande poema filosófico de Nietzsche, “Also Sprach Zarathustra” (1883-1885), que Richard Strauss transformará em poema sinfónico em 1896.
Estou convencido de que uma pesquisa mais vasta e profunda pela obra poética de Sebastião da Gama, orientada pelo triângulo temático Deus-Natureza-Morte, exibiria esses momentos de tensão e dúvida que são inteiramente partilhados pelas mentes mais lúcidas da consciência europeia. Deus serve de contraste e motivo de escândalo perante a persistência da injustiça no mundo (“Pão Nosso de Cada Dia”, em “Cabo da Boa Esperança”). Noutros textos, o Poeta expressa uma clara nostalgia pelos desaparecidos deuses da Antiguidade, evocando nisso o helenismo de Nietzsche (“Deuses”, em “Campo Aberto”; “Baco”, em “Cabo da Boa Esperança”). Noutro lugar, constata-se não tanto a morte, mas o eclipse ou a fuga de Deus (“Paraíso Perdido”, em “Campo Aberto”).
A Natureza está presente diretamente. Sentimos o sal do mar na face, o álgido vento norte, em ligação explícita com a dor e o sofrimento, sublimados ao lado do que é mais sensual e luminoso como diferentes afirmações de uma Vida pensada numa espécie de incondicional e afirmativa aceitação dionisíaca (“Condição” e “Os que Venham da Dor”, em “Campo Aberto”; “Canção do Vento Norte”, em “Cabo da Boa Esperança”). Ou ainda, a Natureza vista como oposição a Deus (“Palavras a Frei Agostinho”, em “Campo Aberto”).
A morte é um tema que surge também em múltiplos laços associativos e sob conotações, aparentemente contraditórias, mas sempre subtis. Destacaria, mais uma vez num registo de vitalidade dionisíaca, a coragem de aceitar a morte, como um gesto supremo de triunfo da vontade de viver, nunca se confundindo com a patologia mística de a desejar. Como todos estes temas do triângulo se conjugam, não nos surpreende escutar o Poeta recorrendo a Cristo numa exortação por mais um fôlego existencial, perante uma morte ainda não merecida (“Cristo”, em “Campo Aberto”).
Sebastião da Gama ocupa um lugar próprio no quadro dos temas e controvérsias do “espírito do mundo” (Zeitgeist) europeu da sua época, que em muitas facetas ainda é a nossa. A única imortalidade que nos é acessível, na fragilidade da condição humana, é aquela que é alimentada pelo diálogo intelectual com a palavra dos que já não caminham debaixo do sol. As palavras poéticas de Sebastião da Gama têm tesouros suficientes para um diálogo de duração indeterminada ao longo das gerações. E isso é um privilégio partilhado apenas pelos grandes criadores. Aqueles a quem designamos como clássicos.

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