Foi em Grândola que a leitura pública de um poema deu origem à canção que ligou a vila alentejana à Revolução de Abril
No concelho de Grândola, a cultura tem assumido ao longo das décadas diferentes expressões, marcadas por tradições locais, associações musicais, património rural e iniciativas comunitárias. Entre os diversos momentos que compõem o percurso cultural do território, há um episódio que, pela sua repercussão, continua a ser assinalado como ponto de referência: a origem da canção “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso.
O acontecimento remonta a 1964, ano em que o autor participou num serão cultural organizado pela Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense. A associação, fundada em 1912, mantinha uma forte actividade musical e cívica, integrando concertos, ensaios, saraus e debates. Foi nesse contexto que José Afonso apresentou publicamente, pela primeira vez, o poema que viria a ser transformado em canção. A ambiência vivida nesse encontro inspirou a composição que mais tarde seria gravada no álbum Cantigas do Maio, editado em 1971.
A canção viria a ganhar um papel central na história contemporânea portuguesa ao ser escolhida como uma das senhas da Revolução de 25 de Abril de 1974. A sua transmissão na Rádio Renascença, na madrugada do dia 25, indicou às forças militares o arranque das operações que levariam à queda do regime do Estado Novo. Com esse gesto, o nome da vila de Grândola passou a estar associado a valores de liberdade, resistência e fraternidade, tornando-se parte integrante da memória colectiva nacional.
Desde então, o município de Grândola tem promovido diversas acções com o objectivo de preservar este legado. A Sociedade Musical Fraternidade Operária, onde ocorreu o episódio original, mantém ainda hoje actividade como associação cultural e filarmónica, recebendo regularmente concertos, formações e eventos. Em redor deste espaço, a autarquia tem desenvolvido projectos de valorização do património imaterial, incluindo instalações evocativas, programação cultural anual e parcerias com escolas, universidades e entidades culturais.
A canção é também um dos eixos centrais do programa municipal de educação para a cidadania e para a história local. Nas escolas do concelho, é abordada em múltiplos níveis de ensino como objecto de estudo literário, musical e histórico. Anualmente, a 25 de Abril e a 17 de Maio (data da leitura original do poema), realizam-se eventos comemorativos com concertos, recriações, exposições e intervenções públicas.
Para além da dimensão simbólica, o impacto da canção tem sido igualmente reconhecido em termos de identidade local e de projecção externa. Ao longo das últimas décadas, o nome de Grândola tem sido associado, em Portugal e no estrangeiro, ao imaginário da canção, sendo frequentemente referida em eventos culturais, livros, filmes e reportagens.
Ainda que o concelho tenha conhecido outros desenvolvimentos relevantes na área da cultura — como a reabilitação do espaço mineiro do Lousal, a criação do Museu de Arte Sacra, ou as iniciativas de promoção da música tradicional e do artesanato — o episódio de 1964 permanece como um marco central na cronologia cultural de Grândola.
Em 2024 e 2025, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o município reforçou o investimento na preservação e divulgação deste património, com destaque para a criação de um percurso pedonal temático, a publicação de um roteiro histórico-cultural e a reedição de materiais ligados ao espólio de José Afonso e da Sociedade Fraternidade Operária.
A ligação entre a vila de Grândola e a canção que dela herdou o nome mantém-se, assim, viva no tempo e no espaço, representando uma intersecção singular entre criação artística local e transformação histórica nacional.