Jovem artista alia pintura, música e design numa prática multidisciplinar. Autodidacta, fundou a marca Upheaval.Art e reflecte agora sobre os desafios da criação num tempo marcado pela tecnologia
Guilherme Lourenço é um jovem artista visual que tem vindo a traçar um percurso singular no panorama criativo contemporâneo, aliando pintura, design e música numa prática multidisciplinar em constante evolução. Autodidacta, começou a desenhar desde muito novo, recordando-se de passar horas no quintal dos avós a observar e retractar pequenos elementos da natureza, como formigas. O gosto pelo desenho cedo deu lugar à exploração de outras formas de expressão, e foi em 2021, com a criação da plataforma Upheaval.Art, que decidiu investir seriamente na produção artística, com a aposta num modelo aberto à experimentação, à colaboração e ao cruzamento entre linguagens visuais e sonoras.
Em entrevista a O SETUBALENSE, Guilherme Lourenço reflecte sobre os principais desafios de ser um jovem artista em Portugal, nomeadamente a dificuldade de conciliar o trabalho com os projectos criativos e a incerteza que acompanha qualquer investimento pessoal sem garantias. Ainda assim, mantém uma visão de continuar a desenvolver o projecto com consistência e, a médio prazo, dedicar-se inteiramente à criação artística.
A tecnologia e, mais recentemente, a inteligência artificial (IA), são temas que o artista encara com pragmatismo. Utiliza ferramentas digitais para pesquisar e aprofundar o conhecimento sobre materiais, mas sublinha que a IA nunca substituirá a experiência física e sensorial da pintura. Reconhece que estas tecnologias levantam questões éticas, sobretudo no que diz respeito à autoria e à autenticidade, mas acredita que, usadas de forma consciente, podem servir como ferramentas complementares ao processo criativo. Ainda assim, afirma com convicção que há algo de irrepetível na expressão humana: a imperfeição, a intenção e a emoção “não são replicáveis” por máquinas.
O jovem grandolense analisa também o lugar do artista num mundo cada vez mais digital. Ao mesmo tempo que reconhece as transformações trazidas pela tecnologia, não abdica da ligação íntima com os materiais, com o gesto e com a história pessoal que coloca em cada criação. Para os mais jovens, pede que sejam persistentes, que confiem no seu trabalho e que acreditem no processo.
Como começaste na pintura?
Não tenho bem a certeza, mas pinto desde que me lembro. Na verdade, gostava mais de desenhar. Lembro-me de estar no quintal dos meus avós, com cerca de 4 anos, a desenhar as formigas que via passar.
Como tem sido a tua trajectória como artista até agora?
Tenho tido interesse por várias vertentes — como a música, o design e a pintura. Sempre explorei estas áreas desde muito novo, mas foi apenas em 2021 que me dediquei mais seriamente, quando comecei a criar a minha marca, upheaval.art, onde articulo arte, design e cultura, promovendo uma prática multidisciplinar, aberta à colaboração e à experimentação.
Quais foram os maiores desafios que enfrentaste como jovem pintor?
Acreditar em mim e conciliar o tempo entre o trabalho e os meus projectos artísticos. É complicado arriscar e investir em algo pessoal sem garantias, principalmente quando tens contas para pagar. Encontrar esse equilíbrio ainda é um desafio, mas com o tempo vais descobrindo métodos e ganhando confiança.
Há alguma exposição, projecto ou obra que consideres um ponto de viragem na tua carreira?
Definitivamente, a criação da minha marca, upheaval.art. Foi quando decidi que ia investir verdadeiramente naquilo que gosto de fazer.
Que artistas mais influenciam o teu trabalho?
As minhas inspirações variam bastante conforme a fase da minha vida e o que me toca naquele momento. Nem sempre artistas da mesma área influenciam directamente o meu trabalho; por exemplo, músicos podem inspirar a minha pintura, e pinturas podem despertar ideias para a música que crio. Além disso, encontro muita inspiração na paisagem urbana e nos pequenos detalhes — portões enferrujados, paredes desgastadas com tinta a cair, essas imperfeições que contam histórias. Dito isto, há artistas que me marcaram de formas diferentes em momentos distintos — como Antoni Tàpies, Franz Kline, Kazuo Shiraga, ou Dean Blunt. Gosto da intensidade gestual, da matéria, da crueza, da carga emocional ou até do silêncio que certas obras carregam. Mas não vejo estas influências como fixas — estou sempre a absorver novas referências, muitas vezes fora do contexto artístico tradicional.
Sentes que a tua arte influencia outras pessoas?
Creio que sim, de certa forma. Nem que seja pela forma como acredito e me dedico ao meu projecto. Acho que inspira outras pessoas na minha comunidade a acreditarem e investirem nos seus sonhos e objectivos.
Quais são os teus planos ou ambições para o futuro?
Gostava de poder dedicar-me a 100% ao meu projecto. Infelizmente, ainda não é possível, mas continuo a trabalhar nesse sentido e a tentar criar com consistência para chegar lá.
Já utilizaste IA em algum processo criativo? Como foi essa experiência?
Sim. Não propriamente no processo criativo, mas mais para obter informações e conhecer melhor certos materiais e recursos.
O que pensas sobre obras criadas totalmente por IA?
Depende do propósito, depende da obra. Já vi coisas de que gostei e outras que, para mim, não fazem sentido.
Achas que a IA pode ser uma ferramenta complementar para artistas ou ameaça o trabalho artístico humano?
Para mim, serve mais para explorar e investigar, nunca como substituto nem como fonte principal de criação.
Já sentiste que o teu trabalho foi impactado (positiva ou negativamente) pela presença da IA no mundo da arte?
Ainda não senti um impacto directo no meu trabalho, mas noto que levanta muitas questões no meio artístico, principalmente no que toca à autenticidade e ao valor da criação humana.
A IA está a mudar a maneira como os artistas trabalham e se posicionam profissionalmente?
Acho que depende da vertente artística, mas sim, está a mudar a forma como muitos artistas abordam o seu trabalho e até a forma como se apresentam ao público.
Como vês o futuro da pintura tradicional num mundo cada vez mais digital e automatizado?
A IA não substitui a forma como te sentes ao espalhar tinta numa tela. Acho que os temas e abordagens da pintura podem mudar, mas acredito que a pintura tradicional continuará a ser valorizada — se não ainda mais.
Os jovens artistas estão preparados para lidar com essas transformações tecnológicas?
Sim. Os mais jovens já nascem a lidar com tecnologia, e muitos acabam por integrá-la naturalmente no seu processo criativo.
O que achas do avanço da IA na sociedade?
Acho que é uma ferramenta útil. O mais importante é sabermos utilizá-la de forma ética e consciente.
Existe um risco ético no uso indiscriminado da IA, especialmente na arte?
Claro que sim. Quando se perde a noção de autoria ou quando se usa IA para copiar estilos ou ideias sem permissão, há sérios problemas éticos envolvidos.
As pessoas estão conscientes do que é produzido por humanos e do que é feito por máquinas?
Está a tornar-se cada vez mais difícil. Há trabalhos feitos por IA que se confundem com criações humanas, e nem sempre essa distinção está clara.
A IA consegue imitar a criatividade humana ou achas que há algo único e insubstituível na expressão artística humana?
Não. A IA consegue reproduzir algumas coisas, mas falta-lhe a essência. Há algo na imperfeição, na intenção e na emoção humana que a máquina não consegue replicar.
Que conselho darias a jovens artistas que estão a começar, num mundo onde a tecnologia avança tão rápido?
Serem persistentes e confiarem no seu trabalho. Nem sempre o reconhecimento vem de imediato, mas é importante manter o foco, continuar a criar e acreditar no processo.