A desumanização do jornalismo

A desumanização do jornalismo

A desumanização do jornalismo

A história do jornalismo mostra-nos como cada ferramenta tecnológica trouxe novas exigências aos jornalistas, obrigando a uma adaptação constante das práticas e das rotinas jornalísticas

A tecnologia e o jornalismo andam de mãos dadas desde sempre, pois os meios de comunicação sempre fizeram uso dos artefactos e técnicas de cada época histórica para conseguirem chegar à audiência. Foi assim com a prensa de Gutenberg, o telégrafo, a rádio, a televisão, o computador, a Internet, as redes sociais e, agora, com a Inteligência Artificial. Cada uma destas tecnologias contribuiu para momentos de rutura e de renovação das práticas jornalísticas.

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A invenção do telégrafo foi essencial para o surgimento das primeiras agências de notícias no século XIX, porque puderam começar a transmitir informações a longas distâncias quase em tempo real, algo inédito naquela altura. No início do século XX, surgiram as primeiras emissões radiofónicas e a rádio entrou no quotidiano das pessoas. Em Portugal, a primeira transmissão radiofónica registou-se em 1925 com a inauguração da rádio Graça em Lisboa. No entanto, a rádio adquiriu especial relevância durante os tempos de guerra, nomeadamente durante a II Guerra Mundial, quando a transmissão de informações era decisiva para os soldados e as populações. Anos mais tarde, a televisão estabeleceu-se como o terceiro meio de comunicação de massas, trazendo consigo a comunicação através de vídeo e alimentando novas formas de consumir informação.

Seguiram-se o computador, o telemóvel e a Internet, tecnologias que marcaram mudanças profundas na distribuição e no consumo de notícias. A digitalização permitiu armazenar, editar e publicar uma quantidade enorme de conteúdos e a Internet abriu espaço para diferentes formas de distribuição de notícias e de participação da audiência. As barreiras entre os produtores de informação e os consumidores tornaram-se progressivamente mais fluidas através dos blogues, das redes sociais e das diferentes formas de jornalismo online. Por outro lado, estabeleceram-se hábitos de consumo noticioso mais imediatos e multiplataforma, a partir do pequeno ecrã. Como consequência, o telemóvel e a Internet têm-se tornado os meios preferenciais de acesso à informação, sobretudo entre as gerações mais jovens.

A história do jornalismo mostra-nos como cada ferramenta tecnológica trouxe novas exigências aos jornalistas, obrigando a uma adaptação constante das práticas e das rotinas jornalísticas. Simultaneamente, multiplicaram-se as oportunidades de criação de formatos, narrativas e histórias a partir das tecnologias emergentes. Com a Inteligência Artificial (IA), a história repete-se.

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A Inteligência Artificial é uma tecnologia que começou a ser desenhada por volta de 1940, momento a partir do qual um grupo de investigadores começou a questionar se os computadores poderiam reagir de forma semelhante a um ser humano perante a mesma situação. Os cientistas inspiraram-se no cérebro humano para construir os primeiros computadores modernos e, em 1950, ficou célebre a obra do matemático Alan Turing que lançava a seguinte questão: “as máquinas conseguem pensar?”. Como tentativa de responder a este enigma, o matemático criou o jogo da imitação, no qual propunha aos participantes que se não conseguissem distinguir a ação da máquina do comportamento dos humanos, então a máquina deveria ser considerada inteligente. Esta prova ficou conhecida, até aos dias de hoje, como o Teste de Turing, que continua a ser uma referência internacional. Com isto, percebe-se que a Inteligência Artificial não é uma tecnologia recente, existe há mais de 70 anos, embora só tenha entrado nas nossas vidas diárias há poucos anos.

A expansão das tecnologias de IA só foi possível graças às melhorias das capacidades técnicas dos computadores, à disponibilização de muitos dados em acesso aberto e aos avultados investimentos financeiros nesta tecnologia. Só em 2024, o investimento global em IA ultrapassou os 250 bilhões de dólares, segundo o AI Index Report, um relatório anual que analisa os dados relacionados com a IA.

Um dos momentos decisivos para o entusiasmo generalizado sobre a IA, conhecido pela expressão inglesa AI hype e também porhype da IA, foi o lançamento do ChatGPT, a 30 de novembro de 2022. Este foi o primeiro passo para a IA se tornar um tema mediático. Mas o uso desta e de outras ferramentas levantou inúmeras questões e desafios humanitários, éticos, profissionais, económicos e até políticos. O ChatGPT é um mecanismo de conversação, desenvolvido pela empresa norte-americana OpenAI, que se encontra disponível online para todos aqueles que têm conhecimentos para utilizar um computador ou telemóvel com acesso à Internet. Basta criar uma conta (aceitar os termos e condições) para poder navegar num sistema que simula uma troca de mensagens entre humanos, com a diferença de que o único humano somos nós.

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Embora a democratização do acesso à IA não seja efetiva, por existirem vários grupos de pessoas que não reúnem as condições para usar estes sistemas, a realidade é que a IA e os algoritmos (sequência de instruções) invadiram todas as trocas comunicacionais na Internet e tornaram-se omnipresentes nas áreas mais importantes da sociedade, como a justiça, a saúde, a educação, a segurança e a administração pública. E fora da Internet, a IA tornou-se um assunto recorrente nas notícias, nos media e nas conversas de café. Hoje, é difícil imaginar uma comunicação digital sem a mediação de mecanismos inteligentes, mesmo que a sua atuação seja invisível ou pouco clara para a maioria dos cidadãos.

Todo este cenário levou a que a IA invadisse também o quotidiano nas redações jornalísticas, embora a diferentes ritmos. Em Portugal, a adoção da IA no jornalismo encontra-se numa fase inicial, embora já se observem várias aplicações promissoras. Os media portugueses começam a explorar os sistemas inteligentes para melhorar a eficiência, a qualidade e a personalização das notícias.

Um dos casos de sucesso é o desportivo Zerozero.pt que implementou um sistema de escrita automática de resumos de jogos. Este é apenas um exemplo português, mas por todo o mundo estão a surgir sistemas computacionais que utilizam algoritmos de Natural Language Generation (NLG) para transformar dados em texto narrativo, permitindo a produção rápida de notícias de agenda, rotineiras e repetitivas. Com isto, torna-se pertinente questionar: Qual será o papel do jornalista neste novo paradigma? Quais as funções do jornalista que não podem ser substituídas por máquinas? Os jornalistas perderão o seu emprego? Poderá a IA levar o jornalismo à extinção?

A IA é apenas uma das faces da transformação que o jornalismo e a sociedade estão a viver e o entusiasmo sobre as potencialidades desta tecnologia não pode obscurecer os desafios e os riscos que a sua adoção generalizada acarreta. Um dos principais problemas reside nos dilemas éticos que emergem quando a IA é utilizada em tarefas que envolvem decisões, responsabilidades e impacto social. A automação da produção noticiosa, por exemplo, ajuda a acelerar o fluxo de informação, mas também aumenta a possibilidade de disseminação de conteúdos incorretos ou enviesados, sobretudo quando os sistemas operam com base em dados incompletos, enviesados ou mal verificados.

Neste contexto, a verificação de factos, um dos pilares essenciais do jornalismo, torna-se ainda mais importante e difícil de executar com rigor. Os sistemas de IA, por mais sofisticados que sejam, não possuem a capacidade de avaliar a veracidade de uma informação com o mesmo critério humano, porque funcionam a partir de correlações estatísticas e não de interpretação e conhecimento contextualizado. O risco de difundir desinformação ou de reforçar preconceitos existe especialmente quando os algoritmos reproduzem os enviesamentos presentes nos dados com os quais foram treinados. Assim, os jornalistas enfrentam um duplo desafio, de produzirem conteúdos de qualidade, mas também de monitorizarem e corrigirem as falhas das ferramentas que utilizam.

Outro aspeto crítico prende-se com a transformação das tarefas nas redações. A introdução da IA está a reconfigurar os papéis tradicionais: tarefas repetitivas e administrativas são delegadas aos sistemas inteligentes, enquanto se espera que os jornalistas humanos se concentrem em trabalhos de maior fôlego, que requerem interpretação, contacto com as fontes, contextualização e faro jornalístico. No entanto, esta adaptação não é isenta de tensões. Por um lado, o uso de IA permite libertar tempo para trabalhos mais exigentes intelectualmente; por outro, acarreta o risco de precarização do trabalho jornalístico e da eliminação de funções consideradas substituíveis. Há, por isso, o perigo de uma desumanização progressiva da profissão, com impactos na identidade e na autonomia dos jornalistas.

Para além dessa desumanização, a constante exigência pelo imediatismo, alimentada pela capacidade da IA de gerar conteúdos quase instantaneamente, acentua a lógica da aceleração da produção noticiosa, que já estava a ser impulsionada pela digitalização. Este ritmo acelerado compromete muitas vezes a qualidade da informação, dificultando a contextualização, a investigação profunda e a procura pelo contraditório, que continuam a ser elementos indispensáveis para o jornalismo cumprir as suas funções essenciais de serviço público e de mediador da sociedade. A IA tem vantagens que não podem ser negadas, como a capacidade de analisar enormes quantidades de dados ou de transformar dados em texto, potencialidades que já deram origem a trabalhos de mérito jornalístico como as investigações sobre o WikiLeaks (2010) e os Panama Papers (2016). Mas a IA tem limitações e não compreende as relações humanas, não interpreta emoções, e não consegue ler as entrelinhas.

É precisamente neste ponto que o valor dos jornalistas humanos sai reforçado: na capacidade de contextualizar os acontecimentos, de interpretar sinais ambíguos, de confrontar diferentes versões de um facto e de estabelecer relações com diversas fontes. O contacto humano, a empatia, o olhar crítico, a criatividade e a capacidade de criar narrativas são atributos que as máquinas (ainda) não conseguem replicar, pelo menos, não com a complexidade e sensibilidade exigidas pelo jornalismo.

O principal desafio não é negar os avanços tecnológicos, mas refletir criticamente sobre como integrar a IA de forma ética, responsável e complementar ao pensamento e trabalho humano, salvaguardando os valores fundamentais do humanismo e do jornalismo. Dar este passo exige iniciativas de literacia digital nas redações, uma regulamentação e autorregulação atenta e, acima de tudo, o compromisso dos media em colocar os direitos dos cidadãos no centro das suas decisões. A IA pode ser uma ferramenta poderosa ao serviço do jornalismo, mas nunca poderá substituir o jornalismo nem a humanidade.

Adriana Gonçalves * Estudante de Doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior (UBI) e investigadora no LabCom (Laboratório de Comunicação da UBI)

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