Na sua estadia por terras setubalenses o sociólogo irlandês confessou que foi em Portugal que começou a ficar interessado nas inscrições feitas em murais. Há 43 anos debruçado sobre esta temática, com várias viagens por diversos pontos do Mundo, não esquece as imagens que viu no pós-Revolução do 25 de Abril de 1974
Bill Rolston, 78 anos, é catedrático emérito da Universidade do Ulster (na cidade de Coleraine, na Irlanda do Norte) onde leccionou a disciplina de Sociologia entre 1977 e 2014.
Licenciado e doutorado na mesma matéria, pela Queen’s University Belfast, tem vários trabalhos publicados – a título pessoal e em conjunto com outros académicos.
Desde 1981 que se debruça sobre o levantamento fotográfico do fenómeno muralista nas paredes norte irlandesas, país onde reside. Em Fevereiro esteve na cidade de Setúbal para uma sessão no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) onde apresentou “Dos Troubles ao Brexit a expressão muralística na Irlanda do Norte”, conferência e discussão integradas no projecto setubalense “Histórias que as Paredes Contam 50 anos do muralismo em Setúbal”.
Esta não foi a primeira vez que esteve em terras portuguesas porque, em 1978, percorreu o litoral em viagem com a sua esposa, época que destaca tendo sido o momento em que ‘despertou o bichinho’ para o estudo e registo fotográfico dos murais.
Podemos dizer que talvez o seu caminho e gosto por fotografar murais começou em Portugal?
Vim a Portugal uma vez, por volta do ano de 1978, e penso que foi nessa altura que me apercebi de duas coisas: que houve uma revolução alguns anos antes e não me tinha apercebido até chegar aqui; e a segunda, que era uma coisa imperdível, porque em cada cidade, e em cada vila, havia murais.
A explosão dos murais em Belfast, na Irlanda, apenas aconteceu três anos depois da revolução, então eu já andava a tirar fotografias aqui em Portugal, antes de tirar fotografias na minha cidade natal.
Foi realmente lindo e maravilhoso voltar depois de todos estes anos. Eu nunca soube que voltaria a este país, mas é agradável estar de volta. Portugal foi um aperitivo, e depois segui para o prato principal.
Lembra-se do momento em que visitou Portugal pela primeira vez?
Nós [Bill e a sua esposa] viajámos à volta da costa, mas ficámos em Lisboa por uns dias. Eu recordo-me de passar por pequenas cidades em que nós conseguíamos ver, parar o carro e sair. Não sabíamos o que muitas delas significavam naquela altura, mas eu tinha comprado um livro “As paredes da Revolução”, de Sérgio Guimarães, sobre os murais em Portugal. Não tinha qualquer explicação, nem textos, eram apenas fotografias.
Depois da revolução em Portugal, o que é que sentia por parte das pessoas que viviam nas terras por onde passou?
Nós viajámos muito, então não ficávamos muito tempo num sítio, eu também não dizia uma palavra em português, ainda não digo para além de “obrigado” [risos].
Mais tarde, aprendi um pouco de espanhol, porque com o espanhol eu podia ler aqui, melhor do que ouvir. Então, não tivemos muito contacto com as pessoas excepto um amigo inglês que tínhamos. Ele vivia em Lisboa e ao fazermos uma volta pela cidade explicou muito sobre a revolução, e também como começaram as guerras em África, era tudo o que eu não sabia na altura.
Eu venho de Belfast, o ‘nosso confronto’ começou a 1969 quase uma década depois e esses dez anos foram uma época terrível, especialmente no início dos anos 70.
O que quero dizer é que reconheci situações aqui daquilo que eu experienciei em Belfast, e não teria reconhecido se não tivesse vindo daquela cidade.
Uma coisa que foi interessante para mim foi a noção de que poderá ter começado a revolução da esquerda para a direita. E soou-me muito estranho porque eu estou habituado aos militares que me param no meio da rua, que me tiram a voz, que mataram alguns dos meus amigos.
Eu não tive uma boa visão dos militares. Então, vir para aqui (Portugal) e descobrir que os militares começaram a revolução foi muito estranho.
Sei que vai estar durante um período em Setúbal. Durante a estandia tem vontade em fazer alguma pesquisa ou tirar fotografias aos murais inscritos pela cidade?
Pesquisa é uma palavra muito forte porque só estou aqui apenas por uns dias. E estou a começar quase pelo início, até porque eu nunca tinha ouvido falar nesta cidade.
Mas aqui está o ponto, se fôr a algum lugar, tenho pelo menos o meu telemóvel, normalmente também a minha câmera, e eu estou constantemente a ver murais.
Na realidade, quando eu viajo com alguém, as pessoas ficam facilmente aborrecidas comigo, tenho este sentido em que vejo coisas que passam além dos meus olhos. Quando estava a viajar sozinho na Irlanda do Norte há alguns anos, aconteceu algo caricato numa estrada que eu conhecia, mas não muito bem, isto fora de Belfast. De repente vejo um ‘flash’ azul nos meus olhos, e digo “Não há nenhum azul ali”.
Voltei aquele local com o carro e reparei que lá estava um mural novo. Outra das situações aconteceu quando estive na Índia, há uns anos, e quase de madrugada estava com alguns amigos e mais um homem à procura de um leopardo.
Fizemos uma viagem de cerca uma hora e no final este homem diz “não vai acontecer”.
Voltámos a fazer todo o caminho para trás, de volta ao início do parque, quando o condutor disse que iríamos parar. Assim foi, paramos, e ficámos sentados à espera até que um leopardo apareceu por detrás de uma árvore.
Imediatamente perguntei-lhe “como é que viu o leopardo?” ao que ele respondeu “enquanto estávamos a andar eu vi algo que não era suposto mexer-se”.
E foi nesse momento que me apercebeci de que às vezes sou assim, mas na ‘caça’ por murais, por pósteres, ou qualquer outra coisa que esteja nas paredes.
O seu trabalho é muito focado em momentos históricos da Irlanda. Viajou à volta do Mundo para fotografar murais de muitos eventos. Qual foi o mural que mais marcou na sua carreira?
Vou falar de dois momentos distintos. Um deles na América do Norte, e também posso incluir o México porque eu sei que os mexicanos ficam muito aborrecidos se nós dissermos América Central. Se olhares para os murais no México, eles vão para os “Los Tres Grandes” [Os três grandes]: Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco.
Mas também a influência do Chicano em San Diego, San Francisco, Los Angeles. Eles são profundamente empolgantes, uns mais políticos do que outros. Por exemplo, em Los Angeles está a chamada Grande Muralha de Los Angeles, que tem quase um quilómetro e que tem vindo a ser pintada ao longo dos anos. Começou na antiguidade, os trabalhos seguiram-se depois quando existiram alguns momentos de proibição da expressão artística, na guerra do Vietname e também com o movimento Black Lives Matter [traduzido: As vidas negras importam], os murais são surpreendentes.
No outro ponto de vista do espectro, há murais que são artisticamente muito pobres. Quando estive em Gaza, há sete anos, não havia registo de grandes murais. Eram amadores de várias formas, mas eles falavam-me sobre resistência e perguntavam “o que é que eu posso fazer para lutar contra o que me está a acontecer?”. Isso era simplesmente incrível. Quando eu vejo pessoas que se movem pela expressão de algo sobre as suas vidas, os seus sentimentos, considero que isso é incrível.
Artisticamente, não são murais muito bons, mas são muito importantes.
E na Europa, quais são as artes que considera mais marcantes?
Há oito anos fui sozinho para Sardanha, uma pequena ilha em Itália. No início dos anos 70, havia um professor em Milão para ensinar aos habitantes locais sobre o comunismo. Ele começou a falar com as crianças sobre política e depois teve a ideia de começar a pintar murais sobre política. Então, desde esses tempos até à actualidade, existem murais políticos, principalmente políticos, e isso é incrível.
Tanto quanto eu sei esse professor é ainda vivo, no entanto, voltou para Milão há muitos anos.
A tradição manteve-se com o lema de que não importa a qualidade, mas sim a quantidade, e isso é muito impressionante.
Considera que todos os murais têm uma vertente ou visão política?
Existe uma posição que diz que qualquer mural é político porque se eu escrever numa parede, é uma afirmação política sobre a vida.
Outro exemplo é, se for um mural numa propriedade privada, eu acabei de danificar uma propriedade e isso é um acto político. Existe ainda outra perspectiva, numa vertente mais artística, que diz que todos os pintores que se expressam num quadro ou numa parede estão a fazer uma afirmação política.
Não é sobre o Mundo nem sobre eles próprios. Não considero que a posição artística seja muito útil prefiro dizer que estou interessado em murais que façam uma afirmação pública liberal, mais do que uma afirmação política intencional.
Estou mais interessado em murais que façam uma afirmação política e que façam parte de um movimento. Esses não estão a fazer afirmações individuais, estão a fazer parte de um protesto pela paz, são esses que me interessam e sobre os quais eu gosto de escrever.
Em Belfast, enquanto estava a decorrer o conflito, muitos dos muralistas não queriam ser conhecidos porque iriam atrair a atenção da polícia militar. Nas zonas locais, todos sabiam quem eles eram, mas não assinavam os murais e não queria usar o seu nome. Consegues ver que esse era um método de segurança para eles, mas era muito mais do que isso.
Houve uma vez que eu chamei um muralista de artista e ele disse “não sou um artista, desculpa, isso é um insulto”. Eu perguntei lhe porque é que era insultuoso, e ele disse “olhe para um artista, eles vão para um estúdio e estão a copiar o Picasso, e estão a copiar mais alguém”. Explicou-me que fora do estúdio pode haver coisas terríveis a acontecer na rua e eles não vêem nada disso a acontecer.
Então, o ponto é que, isso é um artista e eu estou na rua, e eu não sou um artista. Quando eu perguntei o que é que ele era, ele disse “sou um activista político que pinta”.