9 Agosto 2024, Sexta-feira

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“Deve haver financiamento público ao jornalismo, porque é fundamental à democracia”

“Deve haver financiamento público ao jornalismo, porque é fundamental à democracia”

“Deve haver financiamento público ao jornalismo, porque é fundamental à democracia”

Antigo governante com a tutela da Comunicação Social, que fez parte do Grupo de Alto Nível Europeu para a Liberdade e Pluralismo nos mídia, ajuda-nos a pensar sobre o papel da Imprensa

Miguel Poiares Maduro nasceu em 1967. Foi ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, director do Programa de Global Governance e é professor de Direito em diversas universidades, nacionais e estrangeiras, tanto na Europa como nos Estados Unidos.

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Foi um dos “sábios” europeus que participaram na elaboração do relatório Uma Comunicação Social Livre e Pluralista para Sustentar a Democracia Europeia, em 2013, com 30 recomendações para o sector da comunicação social. Defende a necessidade de apoio público ao jornalismo mas também um esforço de adaptação dos meios às novas formas de comunicação e de consumo.

Quando deu esta entrevista a O SETUBALENSE o Governo tinha acabado de tomar posse e ainda não se falava no seu nome para futuro comissário europeu.

Passados 50 anos do 25 de Abril que democracia temos em Portugal, na sua perspectiva?

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Temas uma democracia que, em boa medida, está consolidada. Ou seja, os princípios básicos do funcionamento da democracia – liberdade de voto, liberdade de expressão, pluralismo de informação, os direitos fundamentais – estão garantidos e consolidados. Foi um processo que implicou também a integração na União Europeia e isso também ajudou a consolidar a democracia nacional.

Mas é uma democracia que apresenta desafios novos e que continua a manifestar algumas fragilidades, porque continuamos a ter uma cultura política que é pouco aberta ao compromisso, que partidariza muito o funcionamento do Estado e da Administração Pública…

No plano do poder local, considera que o grau democrático que atingimos se equipara ao plano nacional?

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Acho que as autarquias locais têm sido dos fóruns de organização política e de organização democrática mais bem-sucedidos, com problemas – casos de corrupção e má-gestão – mas, na globalidade, o poder local tem sido dos maiores progressos da nossa democracia.

Os portugueses reconhecem que é dos níveis do governo em que conseguem assegurar uma maior responsabilização dos decisores públicos e em que têm tido um retorno ao nível da melhoria das suas condições de vida muito significativo. Na maior parte das cidades, vilas e aldeias assistimos a progressos notáveis, como os níveis de saneamento local, desenvolvimentos muito significativos, e com equilíbrio financeiro.

A fraca vitalidade do jornalismo regional e local, devido às dificuldades financeiras, por um lado, e, por outro, ter-se sentido a necessidade de limitar os mandatos autárquicos, o que não se fez ainda no plano nacional, não indicam problemas maiores no plano local?

Na globalidade, o poder local é um exemplo de sucesso na nossa democracia, mas tem problemas. Por um lado, tem problemas em não se ter ido suficientemente longe na descentralização, com mais poderes e competências – falo de descentralização porque acho que devemos discutir a regionalização, mas na base de um modelo concreto. Estar a definir em abstracto um conceito de regionalização que ninguém sabe o que é, do meu ponto de vista é só criar ruido, não é útil. Por outro lado, há uma assimetria muito grande no poder local.

Onde as comunidades são pequenas ou muito envelhecidas, o peso das câmaras, dos serviços municipais, é muito significativo, e isso cria um controlo sobre a sociedade civil que é muito preocupante. Nós sabemos de casos em que uma fatia muito significativa do emprego [no concelho] depende do próprio município, isso cria uma situação de dependência e, do outro lado, uma capacidade de controlo político, de cacicagem, de sindicato de votos, de cercear a liberdade e o escrutínio da comunicação social local que é muito preocupante. Deveríamos olhar para mecanismos de contra-poder e de limitação desse excesso de poder.

No plano nacional há o problema de os territórios com menos população terem menor interesse eleitoral.

Os círculos eleitorais com menos votos tendem a ser de zonas menos populosas, muitas vezes do interior, o que acaba por significar terem menos peso eleitoral, têm menos peso nas decisões políticas. Assistimos, no país, a uma retórica política que fala constantemente da coesão territorial, mas, na prática, quando se trata de decidir politicas publicas o que conta é onde estão os votos. Temos de introduzir, no nosso sistema político, elementos que corrijam este enviesamento para as zonas urbanas e litorais.

Pode passar, por exemplo – já fiz uma proposta no âmbito da revisão constitucional – tanto para os territórios menos populosos como para os jovens, por uma espécie de segunda câmara que, não tendo um poder de voto igual ao da Assembleia da República, pudesse obrigar a haver pareceres para certas matérias. Seria uma forma de envolver mais esses sectores com menos peso eleitoral no processo democrático.

Além das fragilidades, ia falar dos desafios e das ameaças para a democracia.

Parte dos desafios tem vindo a crescer. Sempre tivemos um nível baixo de confiança nas instituições públicas, que se tem vindo a agravar ao longo dos últimos anos, e tem vindo a revelar-se, também, crescentemente, a perda ou a eliminação do nexo de representatividade. Há muitas pessoas que não se sentem representadas pela classe política actual, e é isso que explica o crescimento dos partidos populistas, que se alimentam, sobretudo, da percepção, por parte de um número significativo de cidadãos, de que as elites politicas já não estão lá para os representar mas apenas para satisfazer os seus próprios interesses.

Em Portugal ficou bem demonstrado com a penetração que o Chega teve, por exemplo, na abstenção.

O crescimento do Chega é resultado disso. As pessoas foram mobilizadas para votar num partido que é contrário ao sistema e que lhes diz que o sistema democrático não está a funcionar e não os está a representar. Isso revela que tínhamos um nível de abstenção muito elevado devido ao descontentamento.

Lembro-me quando se dizia que Portugal não tinha um problema com o populismo como os outros países europeus. Isso não é verdade, aquilo que faltava era uma liderança política capaz de activar esse descontentamento. Estamos a ver que quando aparecem líderes políticos com capacidade de relação emocional com esse eleitorado descontente, o nível de abstenção desce.

Acha que o sistema está condenado ou haverá algum remédio?

O sistema não está condenado, mas tem de se reformar e eu acho que são necessárias três coisas. A primeira é que a classe política tradicional, se quer contrariar as forças populistas, tem de reconquistar a confiança dos cidadãos e, para isso, é fundamental alterar a percepção de que estão a defender os seus próprios interesses em vez dos interesses dos cidadãos. Isso passa, desde logo, por um reforço da percepção de integridade no exercício de funções públicas.

Será suficiente a auto-regulação da classe política ou é necessária a fixação de regras, designadamente planos de combate à corrupção?

A fixação de legislação nesta matéria também é uma forma de auto-regulação porque é a própria classe política – o Parlamento – que legisla. Há matérias em que são necessárias regras e há outras em que é necessário instituir juízos com responsabilidade política. Acho que um dos grandes erros dos últimos anos foi confundir responsabilidade criminal com responsabilidade política como se a responsabilidade política e ética se esgotasse na responsabilidade criminal.

Não pode ser e isso é um erro muito grande que levou até, por vezes, à percepção de que há uma justicialização da política. O que é consequência dos políticos terem afastado todas as formas de responsabilização politica e terem dito que só há responsabilização politica quando há responsabilidade criminal. Não pode ser assim.

Como lidar com os resultados destes partidos populistas? Há aquela teoria de que devem ser chamados à governação para as pessoas perceberem o que realmente ali está. Acha que resulta?

Não defendo essa abordagem. Quando se tem seguido essa abordagem, tem-se tido uma de três coisas, ou até as três ao mesmo tempo. Quando os populistas se transformam em partidos bastante significativos o ‘abraço de urso’ pode significar o contrário, pode ser o partido tradicional moderado que é engolido pelos populistas em vez de ser o partido moderado a engolir os populistas. Segundo risco, muitas vezes esse ‘abraço de urso’ funcionou em parte moderando os partidos radicais e mais extremistas, mas também contemplou com algum radicalismo os partidos moderados. Em terceiro lugar, frequentemente quando aconteceu mesmo essa socialização, essa moderação dos partidos radicais, não se resolveram os problemas que estão na base.

O resultado foi o aparecimento depois de outros partidos populistas. Resolveu-se um problema e criou-se outro. As outras abordagens também não têm sido muito bem-sucedidas. Tentar batalhar dizendo simplesmente ‘fazemos uma separação clara’, não é necessariamente também uma solução milagrosa. É aquela que eu defendo no contexto português, mas olhamos para a realidade na Europa e verificamos que os partidos populistas continuam fortes. Por isso digo, temos que olhar para as condições de base, quer para a forma como a democracia funciona, quer para os problemas e preocupações que as pessoas sentem. As pessoas sentem que o sistema político não está a lidar com esses problemas.

Começou pela imagem do ‘abraço do urso’. Na realidade portuguesa, o ‘urso’ já está demasiado grande, não é?

Como sabem eu sou do PSD e há algumas pessoas dentro do meu partido que até têm posição contrária à minha, mas sou favorável a essa separação clara. Sempre fui contrário a um acordo e há bastante tempo que o defendo e digo. Aqueles do PSD, que julgam que o PSD pode dar um abraço de urso ao Chega, podem acabar por descobrir que o abraço fi ca ao contrário. André Ventura, e isso é legítimo do ponto de vista das aspirações pessoais, não quer ser apenas um líder de um partido que influencia a governação. Ele quer liderar o espaço político, a direita e o centro-direita. O equivalente a Salvini, em Itália.

Ventura não se quer coligar com o PSD para fazer um amplo programa de reformas para o país, em conjunto, ele quer coligar-se, ou dar a aparência que quer coligar-se, com o PSD como parte de uma estratégia para chegar ao poder e ser ele a liderar.

Ele queria ser líder do PSD, entretanto julgou que, se calhar, chega mais rapidamente a uma liderança virtual do PSD através de outro partido que depois lidere a federação de partidos à direita. É uma estratégia política, legítima do ponto de vista pessoal dele, mas acho que é um erro do PSD embarcar nesta estratégia.

Qual é, hoje, a importância e o papel do jornalismo para a democracia e para a liberdade?

Os jornalistas são os editores da democracia, e eu explico porquê: a democracia necessita de processos editoriais. Há um pequeno conto do Jorge Luís Borges com o personagem Funes, que tem uma memória prodigiosa, mas não consegue transformar aquela informação em conhecimento. Faltava a capacidade de pensar.

Hoje temos acesso à informação sobre tudo, – através do Google e da inteligência artificial – mas isso não pode ser confundido com conhecimento. Para ter conhecimento temos de seleccionar informação e ter competência técnica para perceber essa informação e nenhum de nos tem competência técnica em todas as áreas da vida. Por exemplo, provavelmente podemos ter a mesma informação que os nossos médicos, mas isso não faz de nós pessoas mais capacitadas do que os nossos médicos para fazer diagnósticos relativamente a doenças que tenhamos. É assim também para a democracia, que assenta em pressupostos cognitivos. Formamos as nossas opiniões políticas em pressupostos epistémicos.

Como é que determinamos quais são os factos nos quais assentam essas opiniões? O que acreditamos ser verdadeiro e o que acreditamos ser falso? Em todas estas dimensões, o jornalismo teve sempre um papel importantíssimo. Eram os jornalistas que fixavam a agenda política, quando víamos a manchete do jornal, ou quando abria o telejornal, definiam a agenda, os temas e as opiniões que nós ouvíamos e os factos em que assentavam.

Hoje, essa intermediação democrática, essa edição democrática, que era feita pelos jornalistas, está a ser colocada em causa pelas redes sociais, que nos dão uma falsa percepção de conhecimento porque temos acesso a imensas opiniões, a todo o tipo de informação. Mas, na realidade, sem os mecanismos válidos, sérios, credíveis para avaliar da qualidade dessas opiniões e da veracidade da informação que estamos a ler. Este é um dos grandes desafios democráticos.

E como se vai conseguir fazer perceber a importância do jornalismo?

Temos de criar instrumentos de apoio ao jornalismo tradicional, nesta fase muito problemática de transição, mas creio que o futuro não vai passar por voltar a transferir as pessoas das plataformas digitais para o jornalismo tradicional. Passa, sim, por transferir o jornalismo para as redes sociais e para os processos editoriais das plataformas digitais. Uma das coisas que tenho defendido é que os algoritmos deviam ser concorrenciais. Devíamos poder escolher outros algoritmos que não o do X ou do Facebook e deveriam ter curadoria.

Não é só a transparência, é a liberdade de escolha e haver algoritmos curados, editados, por jornalistas, por projectos editoriais. Por exemplo, que vários jornais se juntassem em rede e tivessem um algoritmo para dar acesso à informação. No fundo, que a minha página do Twitter fosse curada por aquele jornal em que eu confio, por exemplo.

Em 2013 fez parte do Grupo de Alto Nível Europeu para a Liberdade e Pluralismo na Comunicação Social, que produziu um relatório com 30 recomendações. Dez anos depois essas recomendações continuam válidas?

Várias delas sim. Algumas demoraram bastantes anos a ter utilidade. O acto de liberdade de imprensa da União Europeia foi adoptado muito recentemente e impõe regras mínimas que todos os Estados têm de respeitar e que não existiam. A União Europeia não tinha esse poder garantido, que todos os Estados membros respeitem certos princípios básicos de autonomia editorial, liberdade de imprensa de respeito e segurança dos jornalistas, tudo isso.

Esse acto, que foi adoptado muito recentemente, era uma proposta que já vinha desse relatório. Lembro-me de quando o relatório foi aprovado, isso parecia totalmente impossível. Às vezes as coisas demoram o seu tempo, mas acabam por acontecer. Há outros desafios que são totalmente novos pelo que, entretanto, esse relatório já está desactualizado. Temos que fazer outro.

Em Portugal, já se fala abertamente do financiamento público do jornalismo. O relatório europeu já apontava essa necessidade, há mais de dez anos.

Acho que se justifica a existência de financiamento público, do Estado, pelo papel que o jornalismo tem na democracia. O jornalismo é quase um bem público da democracia, e, sendo um bem público e fundamental à democracia, é importante ajudar a preservá-lo.

Agora, pela sensibilidade que existe quanto à actividade jornalística, à protecção da sua liberdade e da sua autonomia, assim como à prevenção dos riscos de interferência governativa e pública, é muito importante reflectirmos bem sobre de que forma se deve organizar esse financiamento público. Ele não deve ser um pretexto, um instrumento ou uma oportunidade para governos, partidos ou outros instrumentalizarem o jornalismo. Por isso é que esse relatório já tentava avançar um pouco com isso.

O meu modelo favorito passa por instrumentos que sejam claramente objectivos que não dêem margem de excepcionalidade política aos governos e aos Estados no financiamento. Por exemplo, quando eu estive no governo fizemos uma coisa nesse sentido, e que o actual Governo retomou, que é a publicitação obrigatória de todos os projectos financiados por fundos europeus num determinado município ou região nos jornais desse município ou região.

É começar a fazer um caminho ao contrário do que foi feito durante as últimas décadas, em que foram retirados meios de receita aos jornais com o fim da obrigatoriedade de publicitação de inúmeros actos. Com a vantagem de que isto tem um valor enorme ao nível da transparência, no controle por parte da população relativamente a como estão a ser usados fundos europeus. As pessoas podem ver quais são as empresas que estão a receber dinheiro de fundos europeus e para que projectos, no seu município, na sua região. E, ao mesmo tempo, isso apoia a comunicação social local e regional. Foi uma coisa que nós deixamos na lei, que acabou por nunca ser cumprida pelos governos que se sucederam.

É uma boa medida e um bom instrumento, desses que não são discriminatórios, é objectivo. Outro instrumento por que tenho particular carinho é uma espécie de voucher para os cidadãos consumirem os mídia. Ideia é dar a cada cidadão um voucher e que esse cidadão depois decida qual o projecto que quer apoiar. Assim, os projectos de mídia vão concorrer com base na credibilidade e no interesse que geram para com os cidadãos para obterem esses apoios.

Que papel e importância tem a imprensa regional na consolidação da democracia e no desenvolvimento socioeconómico? Numa altura em que temos um deserto de notícias cada vez maior…

Sim. Mas não é um deserto de notícias, é um deserto de cobertura noticiosa. São coisas diferentes. Temos dados que indiciam que as pessoas consomem mais informação do que consumiam no passado. Portando, em teoria há mais procura por informação, por notícias, do que existia.

O facto de, ao mesmo tempo, termos graves problemas de sustentabilidade em órgãos de comunicação social local e regional, tem muito a ver com a transformação digital, que trouxe um problema de sustentabilidade para os mídia em geral, não só em Portugal. Quanto mais pequena é a escala mais impacto esse problema tem, porque a imprensa local é mais fácil de substituir pelo utilizador que se transforma em jornalista.

Há aquela lógica de qualquer um das redes sociais, das páginas de Facebook, substituírem os jornais, embora as pessoas se esqueçam que os jornais e o jornalismo estão sujeitos a regras deontológicas. Isto está a acontecer, por um lado pela questão de escala, e, por outro, porque se cria depois um círculo vicioso que conduz às dificuldades de sustentabilidade financeira do jornalismo tradicional local.

A falta de recursos da comunicação social local leva a que a sua capacidade produtiva seja muito equiparável á da pessoa comum que faz algumas coisas, não é?

Isto cria um ciclo vicioso que se vai agravando. Creio que a solução, tal como em relação ao jornalismo em geral, passa pela criação de instrumentos de apoio e passa também pela transformação prodigital dos órgãos de comunicação social local e regional. E esta realidade não é simétrica. Há muitas zonas do país onde é importante continuar a ter comunicação social local mais em papel do que digital, dependendo de quem são os seus leitores. Se me perguntasse, há sete anos, se eu admitia passar a ler os jornais em suporte digital em vez de papel, responderia que nem pensar.

Teria dito que adoro ler o meu jornal, tomar o pequeno-almoço, mas, entretanto, hoje quase só leio de forma digital. Mudei o meu hábito, continuo a ler jornais, não me informo só nas redes sociais, assino os jornais electronicamente – infelizmente não somos muitos os portugueses que os fazem -, não abro os PDF que recebo em grupos do WhatsApp, que é uma coisa terrível, que destrói a sustentabilidade do jornalismo, e tento convencer as pessoas a fazerem isso.

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