A liberdade de imprensa é cada vez mais ameaçada pela viragem autoritária de muitos regimes democráticos

A liberdade de imprensa é cada vez mais ameaçada pela viragem autoritária de muitos regimes democráticos

A liberdade de imprensa é cada vez mais ameaçada pela viragem autoritária de muitos regimes democráticos

Neste aniversário d’O Setubalense, ao celebrarmos a democracia e o jornalismo, destacamos, em particular, a importância da imprensa regional

Neste ano de 2024, O Setubalense comemora o seu 169° aniversário. No âmbito da comemoração, que coincide com a celebração dos 50 anos do “25 de Abril”, escolhemos como tema desta edição festiva, a democracia e o jornalismo.

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Se é verdade que existe jornalismo sem democracia, o contrário não pode ser afirmado: não existe democracia sem jornalismo. A comunicação social é fundamental para que haja escrutínio dos variados poderes e denúncia dos seus abusos. Ela é, igualmente, imprescindível para dar visibilidade a variados problemas sociais e garantir a representação da diversidade de vozes existentes na sociedade. Todavia, na última década, a relevância do jornalismo tem sido crescentemente questionada, juntando à crónica crise económica do sector dos media, uma outra, de natureza cívica, relacionada com a sua perda de importância social. Tal revela-se na diminuição do consumo de notícias e no aumento do número de pessoas que considera a comunicação social uma fonte de informação descredibilizada, bem como uma instituição que faz parte de um sistema pernicioso mais amplo, que inclui os partidos e os políticos.

Neste aniversário d’O SETUBALENSE, ao celebrarmos a democracia e o jornalismo, destacamos, em particular, a importância da imprensa regional. Festejamos sem, contudo, nos furtarmos a identificar as dificuldades que a comunicação social atravessa, tal como a própria democracia. Incluímos, também, neste debate uma reflexão sobre os jovens, porque eles são fundamentais para garantir o futuro do regime político que tem na liberdade um dos seus valores essenciais e nos media, nacionais e regionais, um dos seus mais importantes aliados.

O jornalismo e a democracia

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Se antes do colapso do sistema financeiro americano, em 2008, e da crise que se seguiu na Zona Euro, o jornalismo já enfrentava problemas financeiros graves, a sua precariedade aumentou significativamente durante a “grande recessão”. Inúmeras empresas, especialmente as que operam no sector da imprensa escrita, e em particular na imprensa regional e local, perderam investimento publicitário e leitores, muitos dos quais passaram a aceder a informação gratuita através das redes sociais. Isso conduziu a uma história já conhecida: encerramento de jornais, despedimento de profissionais e redução do número de páginas por edição. As publicações resistentes continuaram a enfrentar dificuldades que comprometem o trabalho diário. Por sua vez, o aumento da competição entre meios, potenciada pela internet, impulsionou mudanças no modo como o jornalismo trabalha, instigando uma orientação editorial para as redes sociais e uma (ainda) maior comercialização do discurso mediático.

As organizações profissionais de notícias passaram a monitorizar as redes sociais porque as consideram fontes de informação, espaços privilegiados para disseminar o que produzem e aferir o impacto do seu trabalho, bem como para instigar o envolvimento dos seus públicos. Estas alterações reflectiram-se na produção noticiosa, privilegiando cada vez mais o conflito (controvérsias, polémicas e ataques), o entretenimento (abordagens leves, com interesse humano ou humorístico) e imagens fortes (sensacionais ou potenciadoras de emoções), valorizando-se ainda a disseminação de histórias susceptíveis de gerar partilhas e comentários nas mais variadas redes sociais.

Este jornalismo é mais permeável ao discurso populista, anti-elites e anti-sistema. Tal deve-se também ao facto de os políticos populistas serem astutos fazedores de notícias: eles sabem que um estilo retórico opositor, abrasivo e provocador capta facilmente a atenção dos media. As estratégias de vitimização e de bullying por eles seguidas são acompanhadas por um desempenho pensado para a cobertura mediática.

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Se os políticos populistas precisam da atenção dos media, estes precisam de actores políticos que lhes permitam articular noticiabilidade e viralidade. Seja por motivos ideológicos, comerciais ou para se aproximarem dos consumidores, que estão cada vez mais descontentes com as instituições democráticas, a abordagem dos media foi-se distanciando de enfoques mais racionais, institucionais e aprofundados para apostar em conteúdos sobretudo desafiadores das elites políticas, emocionais e leves. Isto significa que o ecossistema mediático atual beneficia os políticos populistas e pressiona os outros atores a adotarem estratégias de comunicação populistas. Este tipo de comunicação instiga à sua contínua utilização, com o objetivo de fazer frente aos adversários, que também se regem pelas mesmas lógicas.

Esta convergência de necessidades ajuda a perceber porque é que a comunicação populista se está a tornar endémica à própria política. Deste modo, é cada vez menos possível falar em opostos (quem é e quem não é populista), mas em graus (quem é mais e menos, quem é sempre e quem é de quando em vez populista). Acresce que a conturbação social e tecnológica que as sociedades democráticas atravessam contribuiu para que os políticos possam ter um discurso institucional e, simultaneamente, adoptar estratégias de comunicação com uma orientação mais populista.

Muitos destes líderes adoptam estratégias de comunicação que desafiam interditos da democracia: criticam e ameaçam abertamente o jornalismo, acusam os profissionais da informação de serem inimigos dos factos e os grandes produtores de desinformação, e adoptam estratégias de bullying contra os meios que os questionam. Esta forma de agir, ao mesmo tempo que promove a desconfiança em relação ao jornalismo independente, visa castigar os meios que os questionam e criticam. Estas medidas pretendem, ainda, reduzir o contraditório e limitar a liberdade de acção dos jornalistas, aumentar o controlo sobre a narrativa política e a imagem dos políticos, orientar a opinião pública em determinada direcção e desviar a atenção de assuntos sensíveis para eles.

O que isto significa é que a fragilização do sector dos media não pode ser dissociada do contexto sociopolítico mais amplo. De facto, de acordo com os últimos relatórios anuais sobre liberdade no mundo da Freedom House, as democracias estão a sofrer um declínio nos direitos políticos e nas liberdades civis, mesmo em países onde os valores democráticos estão há muitas décadas enraizados na sociedade. A liberdade de imprensa e a independência dos media é cada vez mais ameaçada pela viragem autoritária de muitos regimes democráticos, pela polarização do cenário político e pela ascensão de partidos antissistema.

Os jovens e a democracia

Em 2020, o Centre for the Future of Democracy da Universidade de Cambridge publicou um relatório em que analisou uma bateria de dados de inquéritos realizados em 154 países, entre 1973 e 2020. O estudo concluiu que as gerações mais jovens estão cada vez mais insatisfeitas com a democracia. O descontentamento é crescente entre as gerações em termos absolutos, mas também em termos relativos, em relação à forma como os grupos mais velhos se sentiam nessas mesmas fases da vida. O declínio intergeracional é particularmente evidente nos países anglo- -saxónicos, em particular nos Estados Unidos e Reino Unido, na Europa e na América Latina.

Este descontentamento alimenta- -se das desigualdades de rendimentos e da degradação das condições económicas das novas gerações face às anteriores. A difi culdade em encontrar emprego estável e habitação a preços acessíveis, bem como o aumento dos custos de vida, condenou muitos jovens a rendimentos mais baixos (e tantas vezes precários) e a poucas oportunidades e expectativas de melhoria de vida. A insatisfação está também relacionada com o modo como avaliam o desempenho das instituições democráticas, nomeadamente a incapacidade do Estado para resolver os seus problemas, as situações de corrupção política e o mau funcionamento dos serviços públicos.

Esta percepção tem gerado cepticismo em relação às instituições democráticas e pouco interesse na política convencional. Todavia, apesar de insatisfeitos com o funcionamento da democracia, muitos mantêm-se fi éis aos princípios democráticos – e vários envolvem-se noutras formas de acção política e cívica (como protestos contra o confl ito entre Israel e a Palestina ou o voluntariado em campos de refugiados). Por certo que, em resultado de uma sensação de exclusão social sistemática e da frustração face à incapacidade de os governos produzirem respostas às suas necessidades e preocupações, outros jovens acabam por desenvolver sentimentos de antipatia em relação à democracia: apoiam movimentos hostis a instituições como os media e o sistema judicial, e aos ideais liberais, como o respeito pelos oponentes políticos. Várias investigações na área da comunicação política e da ciência política, avançam que este afastamento ajuda a explicar o sucesso eleitoral de muitos projectos populistas e anti-sistema. De facto, esta reacção cultural, patente na mudança de valores políticos, tem contribuído para a reconfiguração dos sistemas partidários, nomeadamente, com o aumento da polarização, o crescimento dos extremos políticos e a erosão do centro partidário nas democracias ocidentais.

Na perspectiva de muitos jovens, a política formal é incapaz de resolver os problemas relacionados com as suas condições de vida. Acham-na também inoperante perante problemas colectivos cronicamente por resolver, como as alterações climáticas. O cepticismo das gerações mais novas está ainda ancorado no modo como vêem os políticos profissionais: julgam-nos cínicos, orientados para os seus próprios interesses e pouco confiáveis.

A percepção de uma corrupção generalizada, bem como a ausência de canais de comunicação e de estruturas que incentivem uma participação efectiva, afasta-os das modalidades institucionais de fazer política. No entanto, tal não significa necessariamente desinteresse por outras formas de intervenção. De facto, estes jovens encontram outras estratégias de acção colectiva fora das instituições para se organizarem de modo mais informal para defenderem, entre outras, causas humanitárias, climáticas, de direitos dos animais e de justiça social. Estratégias mais radicais, como protestos violentos e de desobediência civil, também têm sido usadas por certos grupos em defesa da acção climática, como Climáximo, por exemplo.

Importa, no entanto, reforçar a ideia de que o afastamento de modos de acção institucionais de fazer política não significa que estes jovens sejam antidemocráticos. A maioria acredita na democracia: entendem- -na como sinónimo de liberdade de expressão individual, envolvimento na comunidade, sobretudo online, e transparência (prestação de contas), principalmente via redes sociais. Ainda assim, a sua relação com a democracia não é linear – é mesmo complexa e repleta de contradições.

Os jovens e a informação

Se com a emergência das democracias de massas, nos inícios do século XX, estar informado tornou-se uma dimensão fundamental da cidadania, grande parte dos jovens que cresceram com as redes sociais desenvolveu uma ligação mais superficial e menos significativa com as questões públicas do que as gerações anteriores. De facto, parte dos actuais jovens adultos não interiorizou a ideia do consumo de informação como um compromisso cívico. Por esta razão, assuntos importantes para a sociedade, mas que não os afectam directamente, não captam o seu interesse. Esse está reservado para o que pode produzir efeitos concretos no seu quotidiano. Isto significa que a relevância atribuída às questões tornou-se mais pessoal do que pública.

Para ligarem o seu mundo ao mundo em geral, os jovens procuram e precisam de notícias, mas não consideram, necessariamente, a informação produzida pelo jornalismo a melhor maneira de as obter. Na verdade, preferem aceder às notícias através das redes sociais, até porque grande parte dos seus interesses está na periferia da agenda jornalística. Para além de os temas e as abordagens da comunicação social normalmente não coincidirem com o que acham útil, interessante e divertido saber, há entre muitos deles um entendimento generalizado de que os media são pouco transparentes e tendenciosos. Eles preferem a Internet, que encaram como uma fonte de informação alternativa, plural e diversificada.

Ainda que alguns jovens procurem activamente informação jornalística para se actualizarem acerca da política, a maioria encontra-a acidentalmente no fl uxo ininterrupto de conteúdos nas suas redes preferidas – Youtube, Instagram, Snapchat e, mais recentemente, TikTok. Todavia, quando se cruzam com mensagens políticas, às peças jornalísticas preferem a opinião de influenciadores ou de amigos sobre a polémica que a dita informação causou. Isto significa que muito do que consomem está permeado de opiniões alheias sem verificação e autoridade, o que aumenta a probabilidade de ter pouca qualidade ou estar impregnada de desinformação. Tal opção alimenta debates polarizados e intransigentes nas tão famosas «bolhas digitais», movidas a animosidade e desconfiança, que fomentam um discurso divisor.

Por outro lado, os conteúdos que privilegiam carecerem de mediação jornalística e mesclam a política com o entretenimento. Algo que os jovens partilham é o interesse por abordagens políticas acessíveis, leves, divertidas e satíricas, feitas por humoristas, youtubers ou influencers no Tiktok. Eles apreciam estes conteúdos bem-humorados, polémicos e irreverentes. No reverso da medalha, tal como revelam variados estudos feitos sobre o tema, muitos jovens reconhecem que têm falta de interesse pelas temáticas «sérias» da sociedade e do mundo, e pouca motivação para acompanhar tais abordagens. Reconhecem, ainda, saber pouco sobre a substância das questões, e estão conscientes da sua falta de conhecimentos sobre a actividade política e partidária, bem como acerca do funcionamento das instituições e do Estado.

Todavia, isto não significa que os jovens estejam totalmente, ou sempre, desligados do que se passa no mundo: interessam-se quando irrompe uma grande crise, como o covid, a guerra na Ucrânia ou novos desenvolvimentos no conflito no Médio Oriente. Nestas fases, usam intensamente as redes sociais para procurarem e partilharem informação, ao mesmo tempo que os seus feeds são inundados por uma imensidão de fragmentos de conteúdos de múltiplas proveniências.

Na torrente informativa dão mais atenção a influenciadores, canais de YouTube, podcasts, contas de activistas e amigos, do que a meios de comunicação social. Para muitos, o discurso institucional, bem como o jornalístico, é demasiado técnico, distante e difícil de entender, enquanto a informalidade, proximidade e emocionalidade dos conteúdos que preferem são mais apelativas, acessíveis e envolventes. Os relatos pessoais são igualmente considerados mais autênticos, genuínos e verdadeiros, logo, mais confiáveis.

Se é um facto que muitos jovens estão cada vez mais desinteressados do trabalho jornalístico, tal não significa, necessariamente, alheamento da realidade. Eles interessam-se, mas preferem abordagens distintas daquelas que o jornalismo tende a oferecer. Estes jovens procuram informação mais acessível, fácil de entender e com soluções para os problemas que estão no topo das suas prioridades.

Este afastamento do jornalismo está longe de ser um retrato que apenas caracteriza membros das gerações mais jovens. Muitos adultos também se estão a distanciar do trabalho jornalístico e a procurar outras abordagens à actualidade. Por isso, é fundamental sensibilizar a população para a importância da credibilidade da informação e a sua associação ao jornalismo. Isto não significa ignorar a existência de mau trabalho – sensacionalista, faccioso ou mentiroso –, mas é importante conseguir ter a capacidade de identificar as falhas e as limitações desse trabalho sem com isso contaminar a avaliação do jornalismo como um todo.

Esta necessidade é urgente, porque vivemos num mundo em que a quantidade de informação em circulação, além de aumentar a dificuldade em saber o que é verdade, contribui para uma crise ainda mais profunda que nos afecta a todos enquanto comunidade. Vivemos num tempo em que o conhecimento enraizado em evidências e factos é crescentemente posto em causa e disputado por outras formas de compreensão do mundo. Múltiplos negacionismos rejeitam a ciência e o saber acumulados ao longo dos tempos, enquanto a revisão do entendimento de factos outrora comumente aceites e as batalhas pelo significado de acontecimentos recentes desencadeiam disposições e conflitos aparentemente intransponíveis. A idoneidade das mais diversas autoridades produtoras de provas é crescentemente questionada e alimentada por certos actores políticos que pretendem espalhar a confusão, a polarização e a crença generalizada de que “nada é verdade”.

Precisamente por isso, ensinar (a uns) e recordar (a outros) o que é um facto, diferenciá-lo da opinião e promover a aferição da credibilidade das fontes é imprescindível. Para tal, reconstruir a confiança no jornalismo é igualmente essencial. A sua profissionalização e subsequente centralidade enquanto instituição basilar das democracias, ocorrida na transição do século XIX para o século XX, fez parte de um desenvolvimento mais amplo de novas formas de legitimidade na produção de conhecimento, que deram origem a profissões que procuram a “verdade”, como as da área da ciência. E os procedimentos científicos tornaram-se ideais profissionais do jornalismo, entendido como uma disciplina de verificação, concretizada em diversas práticas profissionais: a verificação cruzada de dados, a transparência das fontes e a separação entre factos e opiniões. Tais procedimentos contribuíram para a credibilidade e confiança pública no jornalismo, valores esses que urge resgatar.

Urge, igualmente, resgatar a ideia que o jornalismo não sobre vive, pelo menos com a qualidade necessária, sem o envolvimento de todos. Há já alguns anos que vários relatórios internacionais mostram que é reduzido o número de pessoas dispostas a pagar pela informação que consomem. Todavia, o jornalismo tem custos e a qualidade paga-se. Se queremos que se continue a produzir bom trabalho, temos de apoiar o jornalismo. Nenhum de nós tem a capacidade de resolver os problemas do sector, mas cada um de nós pode fazer a sua parte e exercer uma cidadania empenhada, subscrevendo um meio com o qual se identifica. Neste número de aniversário, fica a minha sugestão: caro leitor, subscreva ou ofereça uma assinatura d’O Setubalense. Como não há melhor antídoto à desinformação do que um mercado informativo sólido e relevante socialmente, também está nas nossas mãos garantir que este projecto que nos orgulha a todos continue a produzir informação relevante e de confiança sobre o nosso distrito.

169 Anos | O aniversário d’O Setubalense

Neste número de aniversário d’O SETUBALENSE comemoramos a importância da democracia e do jornalismo. Reafirmamos, em particular, o mérito da imprensa regional e reconhecemos o seu papel na manutenção de uma comunidade viva, interessada, atenta, envolvida e orgulhosa da sua região.

Para tal, publicamos um conjunto de textos sobre o jornalismo de proximidade. Destacamos, também, a importância dos jovens, dando-lhes voz e espaço nesta edição comemorativa em que enaltecemos a história d’O SETUBALENSE – que se confunde com a da região – e que, simultaneamente, a projectamos na missão de continuar a informar com rigor e a oferecer estórias com relevância para os seus actuais e futuros leitores.

Finalizo, agradecendo a todos os que se disponibilizaram a colaborar com esta edição de aniversário e, em particular, a quem escreveu artigos neste número especial d’O SETUBALENSE: Artur Costa, Giovanni Ramos, Liliana Carona e Sádiya Munir.

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